A greve geral deixou em Viana do Castelo um retrato claro das tensões que atravessam o país. Entre setores com forte tradição sindical e empresas onde a mobilização continua a ser frágil, a manhã fez emergir sentimentos díspares: indignação, receio, cansaço e, acima de tudo, uma inquietação generalizada perante o impacto do pacote laboral que o Governo pretende aprovar. Poucos dominam o documento na íntegra, mas muitos reconhecem que as mudanças projetadas podem alterar de forma profunda o equilíbrio das relações de trabalho.
O pacote laboral propõe alterações significativas, incluindo a possibilidade de o empregador não reintegrar um trabalhador após despedimento ilegal, extinção ou redução de mecanismos de presunção de vínculo laboral para trabalhadores de plataformas digitais, reforço do banco de horas, alterações nos direitos de maternidade e paternidade, facilitação de despedimentos e redução de restrições ao trabalho por turnos para quem tem filhos pequenos. Para os sindicatos, representa “um retrocesso estrutural”, enquanto o Governo defende que “moderniza o mercado de trabalho e atrai investimento”.
Em Viana, a mobilização variou significativamente entre empresas. Na Brownie, o ambiente laboral marcado por “pressões, desigualdades internas e casos disciplinarmente controversos” reforçou a adesão. A fábrica parou, e isso não passou despercebido. Martinho, dirigente sindical, falou em “anos de denúncias ignoradas” e em trabalhadores “finalmente conscientes da força que têm”. Um outro trabalhador, da área da qualidade, reforçou a ideia de que “a diferença de tratamento entre colegas continua a ser uma barreira à sindicalização” e vê no pacote laboral riscos diretos como “um banco de horas que, na prática, transformaria horas extraordinárias não pagas em tempo perdido, e despedimentos facilitados num setor onde a rotatividade já é intensa”.
Noutras empresas, como a DS Smith, o contraste foi evidente. A adesão mínima deixou um sabor amargo a trabalhadores como José Flores, que “há anos participa ativamente na negociação de direitos internos”. “Aquilo que temos foi conquistado à base da luta”, lamentou, acrescentando: “Hoje senti-me traído.” Ainda assim, reconheceu na paralisação da Brownie um sinal de que “alguns trabalhadores começam a perceber a força que têm”.
No setor da hotelaria, a crítica direciona-se tanto para a proposta governamental como para a realidade diária já marcada por “horários longos, salários baixos e ausência de descanso”. António Parente, rececionista e dirigente sindical, descreve um setor “violentíssimo” para a vida familiar e teme que um banco de horas alargado ou alterações às regras de trabalho noturno para quem tem filhos agravem ainda mais esse cenário. “Há trabalhadores em Viana que fazem 10 a 15 horas diárias, sem direito sequer ao fim de semana mensal previsto por lei”, recordou.
Também nas Instituições Particulares de Solidariedade Social (IPSS) o sentimento dominante é de alarme. Gabriela Matos e Sónia Braga, ambas sindicalizadas, destacam sobretudo os impactos nas medidas de proteção à maternidade e na possibilidade de despedimentos com “fraca” margem de defesa. “É assutador ver direitos conquistados, ao longo de décadas, estarem agora em risco”, afirmaram, lamentando que “o medo continue a afastar muitos trabalhadores da participação pública”. “Em 2025, ainda há receio de estar numa greve”, admitiu.
A presença do setor das plataformas digitais trouxe outra dimensão ao protesto. Marcel Borges, presidente da Associação dos Imigrantes e Trabalhadores por Aplicação (ASITRAP) e motorista Uber, alertou para a eliminação do artigo 12.º-A, que hoje “permite presumir vínculo laboral em certas condições”. “Trabalhamos dez, doze horas por dia sem direitos mínimos”, descreveu, acrescentando que as alterações propostas podem “inviabilizar ações judiciais caso as empresas aleguem incapacidade financeira para pagar indemnizações”. Para os trabalhadores do setor, o pacote laboral representa “não só a estagnação de um avanço recente, mas um regresso à informalidade”.
Entre os professores, a adesão “expressiva” levou ao encerramento de várias escolas do distrito. Nuno Fadigas, coordenador do Sindicato dos Professores do Norte (SPN) de Viana do Castelo, descreve “um corpo docente cansado”, mas “consciente” de que o pacote laboral poderá “interferir de forma decisiva no futuro do Estatuto da Carreira Docente”, nomeadamente através da “substituição das horas extraordinárias por um regime de banco de horas e da facilitação de despedimentos”. Já Ricardo Pereira, também professor, fala sobretudo no impacte para as gerações mais novas, podendo enfrentar “carreiras instáveis e salários comprimidos”. “O futuro é mais precariedade”, lamentou.
No setor da saúde, a greve assumiu proporções particularmente visíveis. Tiago Batista, médico e dirigente sindical, descreve blocos operatórios fechados, serviços de medicina interna praticamente parados e centros de saúde com adesões “acima dos 90%”. Para si, o pacote laboral “não está isolado”. “Representa mais um passo numa política que coloca em risco a sustentabilidade do Serviço Nacional de Saúde”, considerou, alertando para “a possibilidade de despedimentos seguidos de externalização de serviços e a erosão de direitos de maternidade e paternidade”, que são “essenciais” para manter profissionais no setor público.
A greve em Viana não reuniu a massa que alguns esperavam, mas deixou claro que há dois mundos distintos: setores públicos, altamente sindicalizados e mobilizados; e privados onde o medo e a pressão continuam presentes. “Nos setores públicos, a maioria dos estabelecimentos foi encerrada. No privado, vimos desde adesão total, como na Brownie, até mínima, como na DS Smith. A diferença está na precariedade, nos baixos salários e no receio de retaliação”, explicou Augusto Silva, dirigente da União de Sindicatos de Viana.
O dirigente sindical criticou também medidas específicas do pacote laboral, como a facilitação de despedimentos, o banco de horas individual, o enfraquecimento da contratação coletiva e os limites ao direito de greve. “O pacote não protege o trabalhador, mas dá ao patronato cada vez mais poder. Não há equilíbrio”, concluiu.
Por fim, sublinhou a importância da mobilização contínua, lembrando que “a luta nem sempre dá os resultados imediatos que se espera, mas não lutar é garantir a perda de direitos”. Sobre os serviços mínimos, Augusto Silva esclareceu que “há anos se tenta normalizar regras que acabam por tornar a greve ineficaz, mesmo em setores essenciais, criando confrontos entre trabalhadores e afetando a qualidade dos serviços”.
Organizada pela Confederação Geral dos Trabalhadores Portugueses em conjunto com a União Geral de Trabalhadores, a greve foi convocada em resposta ao anteprojeto de lei da reforma da legislação laboral, sendo a primeira paralisação conjunta das duas centrais sindicais desde junho de 2013, período da intervenção da ‘troika’.
Notícias atuais e relevantes que definem a atualidade e a nossa sociedade.
Espaço de opinião para reflexões e debates que exploram análises e pontos de vista variados.