“Vai, que é teu!”: Festa das Rosas volta a ensaiar o equilíbrio da vida

A 6 de agosto de 1974, Philippe Petit atravessava, de um lado ao outro, as então inacabadas Torres Gémeas em Nova Iorque, caminhado atrás de um cabo suspenso a 400 metros de altitude. Mais tarde, em 1985, quando publicou o “Tratado de Funambulismo”, daria o seguinte conselho a quem ousa dar os primeiros passos neste […]

Notícias de Viana
12 Mai. 2022 7 mins
“Vai, que é teu!”: Festa das Rosas volta a ensaiar o equilíbrio da vida

A 6 de agosto de 1974, Philippe Petit atravessava, de um lado ao outro, as então inacabadas Torres Gémeas em Nova Iorque, caminhado atrás de um cabo suspenso a 400 metros de altitude. Mais tarde, em 1985, quando publicou o “Tratado de Funambulismo”, daria o seguinte conselho a quem ousa dar os primeiros passos neste tipo de exercício: “Concentra o teu olhar na extremidade, no fim, e tenta uma travessia. Não procures a casca da árvore lá atrás, mas salta ao primeiro desequilíbrio (…); é com suavidade que nos devemos mover”.

“O cesto deve representar fielmente a mordoma que o oferece”

Falta pouco tempo para as 16h00. O som dos bombos, que se aproximam da casa de uma das mordomas, intensifica-se. Dentro da sala, ao meio, está o cesto que Teresa Coutinho, de 21 anos, vai oferecer à Senhora do Rosário. Todos se sentam em torno dele, movidos quer pela admiração, quer pela expetativa. Dentro de poucos minutos Teresa carregá-lo-á, pela primeira vez, sobre a cabeça, levando-o até ao ponto de encontro onde o cortejo, que rumará à igreja, vai começar pelas 16h30.

“Na verdade, esta é a casa do padrinho da mordoma”, esclarece um dos presentes, referindo-se a Dinis Pereira, de 42 anos, que embora seja conhecido como bordador dos cestos, não gosta que o tratem assim. “Não somos bordadores, somos um grupo de amigos que gosta de inovar e de alimentar esta enorme paixão em nós e nos outros”, confessa.

Na noite anterior, foram muitos os que marcaram presença na sua casa. Além do cesto de Teresa, também se compunha o cesto da sua melhor amiga, Cristiana Silva, com os mesmos 21 anos. Para cada um deles estava destacada uma equipa numerosa. O trabalho é impressionantemente minucioso e a imagem criada ilude, ao longe, os milhares de alfinetes colocados com precisão milimétrica. “O cesto deve representar fielmente a mordoma que o oferece”, explica Teresa e, por isso, cada imagem e cada palavra que surge é carregada de significado. No seu caso há um tema particular: a perda do pai. “Para mim isto é um sonho e há muito tempo que tenho vindo a planear o desenho com o meu padrinho. (…) No centro está uma imagem dos anjos a adorar o Menino Jesus, que dorme ao colo de Maria. Mas acrescentamos, do lado esquerdo, uma imagem de S. José geometricamente pensada para que, estando presente, esteja ao mesmo tempo oculta, como acontece comigo e com o meu pai”, esclarece, à medida que a reprodução da “Canção dos anjos” de William-Adolphe Bouguereau se vai aprimorando.

Enquanto falamos, ouvem-se foguetes ao longe. “Olha, um cesto já terminou”, comentam. Mas, num instante, ambas as mordomas se tornam mais cautelosas: “Deve ser na brincadeira”. Segundo explicam, é tradição lançar foguetes quando se acaba de compor um cesto, mas há sempre quem os lance antes para “picar” as outras equipas. Contudo, os cestos das referidas mordomas continuam a aprimorar-se detalhadamente. Dinis Pereira explica que, nestes dois cestos, a equipa pensou em utilizar um modelo comum para não “haver despique nem comparações entre as mordomas, e assim espelhar, por um lado, a união entre ambas, que já advém da amizade que têm, e, por outro lado, por apresentar um trabalho comum da própria equipa, porque quem olha para os dois cestos vê que os bordadores são os mesmos”.

Da noite para o dia

Estamos em 2022, e o tempo aumentou a expetativa. Teresa tem 21 anos, mas seria suposto ter saído com o cesto há dois anos atrás, quando fez 19 anos. A pandemia adiou não só os seus planos, mas, também, os de outras jovens de Vila Franca, o que faz com que, na ocasião em que se celebram 400 anos da Festa das Rosas, haja mais cestos que o habitual. Ainda assim, passados tantos anos, são fáceis de detetar muitas das linhas que dão uma invulgar profundidade antropológica e religiosa a esta festa.

Os cestos, feitos de noite, e que só sairão de dia, circulando pelas ruas de Vila Franca, Viana do Castelo, parecem invocar um sinal de um rito de passagem antiquíssimo, em especial se pensarmos que tal acontece na altura coincidente com a transição para a vida adulta, ou seja, no ponto decisivo da rota entre a vida doméstica e formativa, tendencialmente oculta, e a vida pública, preponderantemente solar, algo por demais evidente no esforço para que a identidade da mordoma esteja plasmada no que carrega à cabeça. Afinal, é ela que sairá à rua, que se carregará a si própria. A opção pelo cesto parece, de igual modo, tudo menos inocente, pois eles remetem, indiscutivelmente, para o cesto usado no campo ou na ida à cidade, o cesto do trabalho diário que é convertido em cesto-oferta à Senhora do Rosário, a padroeira, como se de um ofertório alargado e comunitário se tratasse.

Avelino Matos, de 69 anos, uma das pessoas com maior responsabili­dade pela evolução e manutenção da tradição, parece assegurar isso mesmo ao afirmar que o costume de levar os cestos à cabeça deriva, precisamente, da forma como, há alguns anos atrás, se carregavam matérias-primas e bens no quotidiano.

“Confio em quem vai”

É evidente que “a força de um povo dentro de um cesto de rosas”, não é apenas um slogan promocional. Não só pela intensidade com que tudo é feito, mas, acima de tudo, porque o envolvimento da comuni­dade é extramente visível. Chegado o momento de o cesto sair pela primeira vez, Teresa não vai sozi­nha. Para além de um conjunto de homens sempre vigilantes, com ela vai um conjunto de mulheres que condivide o desafio de levar o cesto. Amália Nogueira, de 23 anos, é uma delas. Ao Notícias de Viana conta que é indiscritível poder voltar a vestir o fato, 3 anos depois. “Já tinha saudade. Há algo cá dentro que vibra. É a nossa festa”, confidencia, revelando que, quando chegou o seu ano de oferecer o cesto à Sra. do Rosário, a chuva estragou-lhe os planos e ele acabou por ser levado numa carrinha fechada. “Foi muito triste”, reconhece, mas isso leva-a a sentir cada cesto que é convidada a levar como seu.

Amália estava presente, também, na noite anterior. Faz parte de uma das mais jovens equipas de bordadores, independentemente de levar esse cesto ou não. “A festa começa aí: no bordar o cesto”, afirma, assegurando que “não se trata só de pegar no cesto, mas carregar o trabalho que se faz”.

Outra das pessoas que acompanham Teresa é a sua madrinha, também ela Teresa, de 40 anos. “Os afilhados são para cuidar e ajudar, e se ela precisa da minha ajuda, eu estou lá”, partilha. De facto, levar o cesto é um exercício quase misterioso, ainda para mais quando a sua prática diária e usual se tornou extraordinariamente rara. Mas, Teresa Patrícia não hesita: “ao ver o cesto, independentemente de ele estar a ir bem ou não, confio em quem o leva e em quem vai a ajudar, porque este não é apenas o trabalho dos bordadores, nem da mordomas, mas de todos”. “A possibilidade de ele cair dá adrenalina”, acrescenta Dinis Pereira.

É clara a dedicação de todos. Nas primeiras vezes, Teresa vai ensaian­do qual o melhor modo de carregar “toda a sua vida sob a cabeça”. Num dos momentos em que procura o equilíbrio, o padrinho diz-lhe: “Vai, que é teu!”. Teresa endireita a coluna, ergue as suas mãos segurando-as nas alças do cesto, olha em frente, diz, “É meu!”, e continua o caminho, tal como tinha aconselhado Philippe Petit pedindo que se olhasse a extre­midade do caminho, ou evocando, ainda, outra passagem do seu “Tratado de Funambulismo”: “Nunca tenho medo quando estou sobre o cabo, estou demasiado ocupado”. Em Vila Franca não é diferente. Afinal, é a vida toda que se abraça.

Tags Religião

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