Uma Língua de Todos e Para Todos — A linguagem como dom criador e caminho de comunhão

João Azevedo
26 Jun. 2025 4 mins

Num tempo em que o mundo parece mergulhado na desordem, com guerras regionais a deflagrar em vários pontos do globo e muros a erguerem-se entre povos, culturas e religiões, torna-se urgente revisitar aquilo que nos pode unir verdadeiramente: a linguagem como dom de Deus e como ponte entre as pessoas. O livro “Uma Língua de Todos e Para Todos”, da autoria do Padre Manuel José Torres Lima, é um convite corajoso à reflexão sobre a importância de uma linguagem universal que promova o entendimento e a paz.

Desde o princípio, a linguagem tem um papel criador e estruturante na história da salvação. No livro do Génesis, lemos que “o Senhor Deus formou da terra todos os animais do campo e todas as aves do céu, e levou-os ao homem para ver como lhes chamaria; e o nome que o homem desse a cada ser vivo, esse seria o seu nome” (Gn 2,19). A nomeação das coisas antecede, de certo modo, a sua existência plena — é pela linguagem que o homem se torna cocriador com Deus. Deus mesmo, ao dizer “Fiat lux” — Faça-se a luz (Gn 1,3) — cria com a palavra. A linguagem, portanto, não é apenas meio de comunicação: é também instrumento de criação, comunhão e revelação.

Mais adiante, na mesma Escritura, encontramos a narrativa da Torre de Babel (Gn 11,1-9), onde a humanidade, que falava uma só língua, se dispersa por causa da sua soberba. A multiplicação das línguas é aqui castigo, mas também sinal de que, sem humildade e escuta mútua, a comunicação se perde. Curiosamente, no Pentecostes (At 2,1-11), essa dispersão é redimida: o Espírito Santo faz com que os apóstolos falem diversas línguas, e ainda assim sejam compreendidos por todos. A linguagem, quando iluminada pelo Espírito, deixa de dividir para passar a unir.

É nesta linha de pensamento que o livro do Padre Torres Lima se insere. Ao refletir sobre o Esperanto, uma língua neutra, criada com o objetivo de facilitar a compreensão entre os povos, o autor não propõe apenas uma solução prática, mas também uma proposta ética e espiritual: encontrar formas de comunicação que não dominem, mas sirvam; que não excluam, mas integrem; que não confundam, mas revelem. Esta é, no fundo, a missão cristã: ser fermento de unidade num mundo ferido pela divisão.

Para além da fé, existem hoje linguagens verdadeiramente universais. A matemática é uma delas — base comum da ciência moderna —, assim como a música, que emociona e une sem necessidade de tradução. Contudo, falta-nos ainda uma linguagem humana e acessível, que possa ajudar na construção de pontes culturais e sociais. O Esperanto, ainda que não universalizado, continua a ser símbolo desse ideal.

Como cristãos, somos chamados a construir a paz com os instrumentos que temos ao nosso alcance. A linguagem é um deles — talvez o mais poderoso. Jesus, o Verbo de Deus feito carne (Jo 1,14), é a prova de que a Palavra pode encarnar, tocar, transformar. Se a Palavra de Deus salva, então também as nossas palavras devem servir à salvação dos outros.

“Uma Língua de Todos e Para Todos” é mais do que um livro sobre uma língua: é uma meditação sobre a vocação humana para o encontro e a comunhão. Num mundo que grita, talvez seja hora de reaprender a linguagem do silêncio, da escuta e da paz. E de, com humildade, como no Pentecostes, deixar que o Espírito nos ensine a falar para que todos possam entender — e acreditar.

Tags Opinião

Em Destaque

Notícias atuais e relevantes que definem a atualidade e a nossa sociedade.

Opinião

Espaço de opinião para reflexões e debates que exploram análises e pontos de vista variados.

Explore outras categorias