"Ai, rio não te queixes / Ai, o sabão não mata / Ai, até lava os peixes / Ai, põe-nos cor de prata. / Roupa no monte a corar / Vê lá bem, tão branca e leve / Dá ideia a quem olhar / Vê lá bem, que caiu neve”. Os versos dão início ao filme de 1939 a “Aldeia da Roupa Branca” e o seu enredo, por muitos conhecido, fica quase totalmente resumido no entrecorrer das zangas e rivalidades de duas famílias que mantêm viva e feroz a concorrência no negócio da roupa branca. No final, nenhuma acabará por vencer, mas regressaremos mais tarde ao filme.
Ao fim da tarde do dia 25 de maio, o Jornal Económico lançava a notícia: “Presidente da Câmara de Viana do Castelo aos ‘murros’ com adversários políticos”. Em causa estaria, como o mesmo jornal explicava, “um vídeo em que Luís Nobre (…) aparece a simular ataques físicos a adversários políticos”. O caso viralizou nas redes sociais, com os diversos vereadores da oposição a marcar posição, inclusive na última reunião do Executivo camarário, a 29 de maio, quando o assunto foi puxado “à ordem do dia”. Mas o que há de verdade e de mentira, de ilusão ou de oportunismo, em tudo isto?
Nas imagens, Luís Nobre surge a soquear uma punching ball, literalmente, uma bola com revestimento de couro e câmara de ar no interior, que serve como alvo para socos, objeto que, ao que tudo indica, terá sido oferecido à Assembleia Municipal de Viana do Castelo no fim do ano, por uma instituição de solidariedade que pretendia, com o gesto, simbolizar a urgência da luta contra o cancro. Foi posteriormente a esse momento que o presidente da Câmara terá sido tentado a experimentar a oferta, enunciado, entre os diversos exercícios, os nomes dos vereadores da oposição: Eduardo Teixeira, vereador do PSD e ex-candidato à presidência da Câmara nas últimas eleições; Cláudia Marinho, vereadora da CDU; Ilda Novo, vereadora da CDS-PP; e Paulo Vale, vereador do PSD.
Como se comprova pela existência das imagens, a ocasião, que se passou nos Paços do Concelho, terá sido registada em vídeo por membros próximos do gabinete presidencial, cuja identidade nunca foi confirmada. “Foi um momento privado. Não estava no exercício das minhas funções, mas sim num momento privado; uma oferta que o meu gabinete me fez” numa tradição natalícia da autarquia, esclareceu, na altura, ao Jornal Económico.
Entre dezembro e maio, o certo é que não é, ainda hoje, possível delimitar uma linha do tempo precisa acerca da circulação do registo videográfico. Ao que indica uma nota da autarquia, lançada por ocasião da publicação da notícia e nunca desmentida por nenhum dos vereadores, verdadeiro será que após ter tido conhecimento de que o vídeo estaria a circular entre algumas pessoas, em que se incluía “um vereador da oposição”, Luís Nobre terá chamado “todos os vereadores eleitos para lhes dar nota da existência do vídeo e da sua partilha indevida”, lamentando a situação e pedindo “desculpa aos visados”.
Segundo declarações de Eduardo Teixeira, vereador do PSD, na reunião camarária de 29 de maio, e também elas não contraditas na ocasião pelo Executivo, este encontro terá ocorrido a 4 de abril, o que perfaz quase quatro meses entre a captura das imagens e o encontro, assim como quase dois meses entre a reunião com todos os vereadores e a publicação da notícia. O que permite formular a questão que permanece sem resposta: qual o objetivo da cedência do vídeo ao Económico?
Entre as diversas personagens deste enredo, os vereadores parecem tomar um papel ambíguo, entre tentativas de desvalorização do acontecimento e “estados de choque”. Por exemplo, o mesmo Eduardo Teixeira, colunista semanal do Jornal Económico, onde, no dia seguinte à notícia, falava do “caos” e do “desespero dos portugueses” face ao SNS, prestou as suas primeiras declarações sobre o assunto, preferindo não comentar o vídeo, reservando-se o “direito de, depois de o vermos, dizermos algo”. Mas, na reunião de Câmara, afirmou que se tratou de “uma suposta brincadeira que se tornou num ato menos próprio”, acerca do qual se esperava “mais explicações”, assumindo-se “chocado” com o conteúdo.
Ao que tudo indica, na reunião de 4 de abril terá sido dado conhecimento aos vereadores do assunto, mas não lhes terá sido cedido o vídeo. Mas, ao contrário de Eduardo Teixeira, Paulo Vale, também vereador do PSD, na ocasião do estalar da polémica, reconhecia “saber mais ou menos o que está em causa”. “Soube do vídeo através dele [Luís Nobre], que nos falou e pediu desculpa pelo mesmo, embora sem o ter fornecido”, comentou na ocasião. “Por maiores que possam ser as divergências ideológicas, nunca os princípios em que me orgulho ser formado me permitiriam chegar próximo da atitude que o Sr. presidente da Câmara deixou documentada no vídeo”, afirmou posteriormente na reunião camarária, condenando o ato pelo “desrespeito e desvalor institucional”.
Opinião contrária parece ter o CDS. Hugo Meira, em representação de Ilda Novo, leu um comunicado em que, embora se reconheça um “incidente dispensável”, se delimita que “para todos os efeitos, o CDS não aproveita os erros de ninguém como arma de arremesso”. “Não passou de uma brincadeira que não evidencia qualquer intuito injurioso”, referiu.
Diante do caso, Luís Nobre apresentou-se como “vítima de um crime” e apontou o dedo à incoerência do PSD. “Seria interessante ter a vossa solidariedade, porque sou vítima de um crime e não vi nenhuma preocupação. Vi muita moralidade, mas, quando assim é, tem de ser em toda a sua dimensão”, defendeu.
Talvez esta história não termine como o filme português, em que o Tio Jacinto se dirige à aldeia dizendo: “Nós todos sermos irmões. (…) E o meu interior não é para guerras”, por isso, fica a pergunta se a política continua a ser, como escreveu Pio XI, a forma mais elevada de caridade.
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