O seu nome é João Simão

João Basto
25 Out. 2024 3 mins

No carro dos meus avós existiam 6 cassetes, para ouvirmos durante as viagens. Quim Barreiros, Frei Hermano da Câmara, Quinzinho de Portugal – com o seu inesquecível sucesso “Sousa da Ponte” – e Marco Paulo eram os artistas escolhidos. A seguir vinham, não exatamente por esta ordem, uma cassete de músicas de Fátima e outra de músicas da JuveLeo, produzida em 2002, quando o Sporting venceu o Campeonato, a Taça de Portugal e a Supertaça.

Ora, estas escolhas dizem possivelmente tanto sobre Portugal como o “Labirinto da Saudade”, de Eduardo Lourenço, reconhecidamente um livro clássico sobre a “identidade nacional” que, confessou um dia satiricamente o filósofo, o país tem em demasia.

A razão desta afirmação, que parece desmedida e sem sentido, é a seguinte: enquanto um certo Portugal se conectou à música de intervenção clássica, dominada pela constelação Zeca, Fausto, Zé Mário, Adriano e Sérgio, outro Portugal, certamente maior e demograficamente mais vasto, conheceu o significado da liberdade através de cantores como Quim Barreiros e Marco Paulo, em especial nas regiões onde o Partido Comunista tinha pouca expressão eleitoral.

Por muito que a música de baile, romântica ou de desgarrada, que tem em Marco Paulo e Quim Barreiros expoentes máximos, tenha sido duramente criticada pelos primeiros, acima de tudo por não ter “dimensão política” e ser apenas de “entretém”, foram em grande parte as canções lascivas de Marco Paulo que, primeiro, chocaram o país, e, depois, o introduziram a uma vida longe da moral castradora do Estado Novo.

Aquele que foi conhecido como o “cantor das sopeiras”, foi quem meteu multidões a cantar sem pudor “e mexe remexe, se encosta, se enrosca / Se abre, se mostra pra mim”, como foi aquele que denunciava uma certa polícia de costumes – “Quem nos viu já foi contar que me encontrou com novo amor sem saber nada / Vão falando porque é fácil inventar todos inventam por aí” – que importava e dizia muito mais ao dia-a-dia dos portugueses, que os cantos altamente codificados sobre o F.M.I e “filhos da mãe” do regime.

Quando os mandarins ainda procuravam ditar a imagem que Portugal tinha de si mesmo, barrando-lhe o acesso à televisão, o que Marco Paulo fez foi calcorrear o país, chegando a cantar em circos e em palcos improvisados, muitas vezes em cima de caixotes. Durante bons anos, enquanto a classe esclarecida se conformava à democracia, foi prevalecendo a tese de que era necessário proteger o público de si mesmo, das suas paixões, dos seus ímpetos e fervores. Marco Paulo surgia face a esse quadro sem qualquer rebuço, manifestando uma exuberância e um respeito pelo seu público, estabelecendo uma reciprocidade que fez depressa dele um verdadeiro ícone dos novos tempos, alguém que veio dizer aos portugueses que não havia por que continuarem a carregar o embaraço e a sentirem a necessidade de pedir autorização para sentir algum entusiasmo, ficando depois obrigados a cumprir alguma forma de penitência.

Para tudo isto, Marco Paulo teve de inventar uma nova identidade que, em certa medida, acabou por o consumir. Já não podia ser o simples alentejano João Simão. Mas foi ele quem melhor sintetizou 74, ao pôr, sem medo ou receio, Portugal a cantar: “de quem fui, de quem sou, para onde vou, só eu sei mais ninguém sabe”.

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