Regressar: da bênção da rotina, ao desejo de novas imagens

Entrar numa sala de aula obedecer a um novo ritual. A desinfeção obrigatória das mãos impede a entrada massiva de alunos. As regras de distanciamento, interrompidas quando uma confidência se torna urgente, evitam grandes aglomerações. Os horários desencontrados fazem desaparecer o ruído típico dos intervalos, do sair e regressar à sala de aula, que marca a memória de quem passou pela escola. Para os alunos do 10º ano A e B, a tarde de terça-feira é preenchida com as disciplinas de Educação Física e de Educação Moral e Religiosa Católica (EMRC), esta obrigatória para todos os alunos do Colégio do Minho que, mesmo com este dado diferenciador, também regressaram ao ensino presencial, seguindo o calendário proposto pelo Ministério da Educação. Sobre o confinamento, os alunos fazem, acima de tudo, um balanço positivo, mas recordam as dificuldades que tiveram com as aulas online. No entanto, “nem tudo foi mau”. Sentiram-se “muito” apoiados pelos professores, conheceram-se a eles próprios e aprenderam “a dar valor” às amizades, apercebendo-se de que o contacto presencial é “crucial” nas relações. Em relação à disciplina de EMRC procuram “abordagens diferentes" que lhes deem lições para a vida. Junto deles, o Notícias de Viana procurou descortinar o modo como viveram o ensino à distância, o recolhimento forçado e o regresso ao regime presencial, e como veem a religião e a Igreja.

Notícias de Viana
13 Mai. 2021 15 mins
Regressar: da bênção da rotina, ao desejo de novas imagens

“É esgotante o facto de as nossas áreas de trabalho, conforto e lazer estarem no mesmo espaço”

Embora uns entrassem envergonhados, outros mostraram-se mais à vontade e começaram a contar a sua experiência do confinamento. Sem quererem ser identificados, os alunos da turma do 10º A confidenciaram que o estudo ficou “um pouco para trás”. “Num dia normal, como alunos do secundário, estudamos mais do que nos anos passados. Quando estávamos na escola, chegávamos ao fim do dia a casa e ainda adiantávamos um bocado a matéria. Em casa, não dava para fazer isso, porque chegávamos ao final do dia completamente exaustos. Estávamos num ciclo vicioso de trabalho. Estávamos em casa, mas ao mesmo tempo não estávamos. Já se tornava difícil estudar ao final do dia”, contou uma das aulas que estava na fila da frente da sala.

Neste sentido, quase todos assumem que a concentração rapidamente era quebrada. Ao cansaço juntaram-se as outras responsabilidades em casa como, por exemplo, ajudar e tomar conta dos irmãos mais novos; os animais de estimação e as redes sociais. Ao ouvir as suas partilhas, tornar-se claro que, embora os avanços da tecnologia tenham contribuído para a criação de novas formas de ensino, enriquecendo a área da educação, é extremamente discutível que o ensino à distância seja eficaz, quando comparado com o ensino em contexto escolar e presencial. “Eu sei que não me organizei muito bem por ter mais responsabilidades em casa. Deixei para trás a matéria e estudava mais em cima do teste. Foi difícil”, admitiu uma das alunas, referindo que, muitas vezes, também abria outras janelas no computador. “Tentamos manter o contacto uns com os outros através das redes sociais e isso também nos levou a desviar, por vezes, do estudo”, acrescentou. “O meu estudo não foi muito afetado, mas em confinamento era mais difícil concentrar-me, porque estava em casa. Via o meu gato constantemente a passar à minha frente, por exemplo. Tudo isso dificulta a concentração e perceção de que ‘aquilo’ era sério”, disse Guilherme Passos do 10º B, referindo que “sentia muito o peso do tempo. Passava, simplesmente, o meu tempo a existir.” 

As avaliações também se tornaram “mais complicadas”. “É esgotante o facto de as nossas áreas de trabalho, conforto e lazer estarem no mesmo espaço. Às vezes pensava: ‘Estou no meu quarto. Estou a estudar’, mas, ao mesmo tempo, dava por mim a pensar o oposto: ‘Estou no meu quarto, mas a descansar’”, contou Carolina Rodrigues, do 10º B. 

Em contrapartida, houve alunos que salientaram aspetos positivos. “Tive mais tempo para mim. Aprendi a olhar mais para mim e, às vezes, ao estar na escola, não o fazemos”, afirmou uma aluna do 10º A. “A meu ver, estar em casa ajudou a que houvesse mais organização, porque tinha tudo mais à mão enquanto que, na escola, dependia da mochila para transportar livros e o restante material escolar para trabalhar”, salientou Vasco Silva do 10º B, acrescentando: “Já ao nível do esforço e da dificuldade de aprender, creio que a situação também nos deu o privilégio de termos as coisas perto de nós, possibilitando um outro à vontade.” 

Apesar de partilharem a mesma opinião, Lara Casanova e Tiago Praça não escondem que, na escola, conseguem ser “mais produtivos”. “Em casa sentia que tinha mais tempo e conseguia fazer mais coisas, mas, ao vir para a escola, sinto que sou mais produtiva e acabo por sentir que não chego a casa com aquela sensação de que ainda não fiz nada”, afirmou Lara, reconhecendo: “Estando aqui sentada, não posso sair e, em casa, tinha todas as distrações possíveis à minha volta, o que fazia com que não conseguisse apreender tão bem a matéria.”, algo que Tiago defende também: “Em ambiente escolar é muito mais prático esclarecer dúvidas e interagir com o professor”.

“O apoio foi maior e de mais qualidade”

Com o confinamento, também os professores foram “obrigados” a adaptar-se à nova realidade. A sua preparação foi escassa, mas “deram o seu melhor” para que a aprendizagem não fosse afetada. “Senti que os professores pensaram mais em nós quando nos aumentaram o tempo de intervalos e diminuíram o das aulas. Na meia hora de intervalo, podíamos fazer outras coisas, distraindo-nos um pouco”, considerou uma aluna do 10º B. “Os professores entenderam-nos. O ano passado, eu e a minha colega, estivemos numa outra escola e vivemos os dois fechos das escolas de maneiras diferentes. O Colégio teve uma atitude completamente diferente. Tinham o cuidado de querer saber se estávamos bem e procuravam saber se a estratégia adotada estava a resultar. O apoio foi maior e de mais qualidade. No geral, resultou muito melhor que na outra escola”, afirmou outra. “Os professores fizeram o seu melhor, apoiando-nos e fazendo de tudo para que o período corresse bem”, reforçou uma outra aluna do 10º A.

“Voltar à escola ajudou a retomarmos o contacto presencial”

Regressar à escola deixou grande parte dos alunos contentes, principalmente, por rever os amigos. No entanto, e apesar de as reações uns com os outros fazerem intuir alguma instabilidade e volatilidade nas relações de amizade, estas continuam a ser importantes no crescimento e desenvolvimento de todos. As redes sociais ajudam a diminuir as saudades, mas nada substitui um abraço. “Em casa, passei a maior parte do tempo com os meus irmãos. No entanto, sentia-me sozinha. Apesar de mantermos o contacto uns com os outros, sentimo-nos sozinhos com os nossos pensamentos. Voltar à escola ajudou a retomar o contacto presencial”, salientou uma aluna do 10º A, afirmando: “Estávamos habituados a estar na escola. Fomos para casa e regressámos à escola. Mexe sempre connosco. É sempre difícil, mas não tivemos outra hipótese senão moldar-nos às circunstâncias.” “É muito estranho falar desta situação, porque num momento estamos na escola e no outro vamos para casa. Regressamos e voltamos a casa. Não consigo explicar. O ritmo de trabalho em casa é diferente e, quando regressamos à escola, temos de retomar outro ritmo, a que já não estávamos habituados. São mudanças rápidas num curto espaço de tempo”, confidenciou outra. “Acho que é como os carros de corrida. Estão a 0 km/hora e, em segundos, estão nos 100 km/hora. Foi o que nos aconteceu quando voltamos à escola. Estávamos a um ritmo mais baixo e, quando regressámos, tínhamos 100 trabalhos e fichas. A culpa não é dos professores. Acontece em todas as escolas. Os professores deram o seu melhor. As aulas tinham de ser cativantes ou então, já não estávamos ali”, acrescentou outra.

A turma do 10º B partilha da mesma opinião, mas afirma não ter sido “um choque”. “Já tínhamos passado por isto, ou por algo parecido. Ao regressar, senti que o uso da máscara já era habitual”, disse Vasco Silva. “Acho positivo podermos voltar a socializar, deixarmos de sentir que não temos nada para fazer, termos uma rotina outra vez e não sermos só sedentários, presos em casa”, acrescentou Guilherme Passos. Já Laura Casanova sentiu diferença no tempo de aulas. “Em casa, elas duravam menos, mas ao voltar ao regime presencial, custava-me a meia hora a mais”, contou.

“As aulas de EMRC são uma fonte ao nível da experiência humana e cultural”

No Colégio do Minho, EMRC é uma disciplina obrigatória, ao contrário do que acontece em outras escolas do Alto Minho. Em 2007, a Agência Ecclesia divulgou uma Nota Pastoral do Bispo do Funchal, aquando da inscrição dos alunos nos estabelecimentos de ensino, a frisar a importância da disciplina. “A educação é uma tarefa fundamental da sociedade, como contributo para o desenvolvimento integral e harmonioso das crianças, dos adolescentes e dos jovens e para a participação activa na cidadania.” pode ler-se na Nota, que defendia que a formação dos alunos “não se faz no vazio” e, por isso, “torna-se necessário que os valores autênticos da humanidade e da civilização sejam promovidos e transmitidos, destacando-se, no nosso contexto nacional e europeu, a tradição cristã portadora de uma visão própria da vida, que aponta um caminho de realização humana, em constante abertura à Transcendência”. “É sob esta perspectiva que a disciplina de Educação Moral e Religiosa Católica se integra na escola actual, contribuindo de forma eficaz para a formação da pessoa do aluno, com conteúdos e programas que o ajudam a olhar criticamente o mundo que o rodeia, a compreender as tradições e própria cultura, e a construir um projecto pessoal de vida com sentido”, justificou.

De certo modo e quase inconscientemente são também estes aspetos que os alunos destacam. Sobre as aulas, as duas turmas admitem que procuram “abordagens diferentes” e já discutiram “todos os temas controversos imagináveis”. “O professor, quando o ouvimos pela primeira vez na Missa, fez uma analogia com a série Game of Thrones. Toda a gente ficou surpreendida e, mais importante, ficou a perceber. Se houver metáforas que nos cativem com assuntos atuais, torna-se mais fácil fazer uma leitura cristã da realidade”, considerou uma aluna do 10º A, especificando: “Quando falamos da Bíblia, não nos identificamos, mas podemos transformar isso em metáforas para conseguirmos ligar ao nosso dia-a-dia, mas também depende da metodologia de ensino de cada um. Sejam catequistas, padres, professores e etc.”. “No primeiro período, vimos uma série. Embora não seja propriamente ligada à Bíblia, ensinou-nos lições valiosas. Essa é a essência da Bíblia, e foi-nos mostrada de uma outra forma que nos tocou mais. Cativou-nos. Se não fosse uma série, ninguém aprenderia nada”, reforçou outra.

Já na turma do 10º B, defenderam que EMRC poderá ser a porta da descoberta da fé. “As aulas de EMRC são uma fonte ao nível da experiência humana e cultural. Creio que nos fazem refletir sobre diferentes perspetivas do mundo. Ajudam a formular uma opinião crítica face às coisas”, considerou Francisco Cunha. “Para mim, as aulas de EMRC acabam por ser um sustento, uma forma de praticar a religião, ensinar conceitos, aprender novas formas e novas oportunidades. Acabamos também por abordar temas que, à primeira vista, não estão relacionados com a religião, até porque ela procura lançar as bases de uma sociedade diferente. Aprendemos que a religião está no nosso dia-a-dia. Podemos até ser indiferentes, mas o simples facto de vir à aula de moral, e se é verdade que, possivelmente, não somos os cristãos que podíamos ser, já fazemos uma parte”, acrescentou Vasco Silva.  “Pode ser importante como introdução à teologia. Saber-se o que se acredita e porque razão”, reforçou Guilherme Passos.

“É necessário as pessoas sentirem-se integradas numa comunidade”

Em Portugal, o Cristianismo é a religião com mais expressão demográfica. Mas, de acordo com o inquérito “Identidades religiosas em Portugal: Representações Valores e Práticas”, realizado em 2011, 65,8% dos não-crentes em Portugal são pessoas dos 18 aos 34 anos. No universo dos católicos, segundo o inquérito do Centro de Estudos e Sondagens de Opinião e do Centro de Estudos de Religiões e Culturas, ambos da Universidade Católica Portuguesa, apenas 28,8% estão naquele grupo etário. 

De facto, mesmo que nenhum diga ostensivamente que não é cristão, é fácil reconhecer no discurso da maioria os grandes paradoxos da pós-contemporaneidade, reconhecíveis, logo de imediato, para quem já leu, por exemplo, A Era do Vazio de G. Lipovetsky: um certo relativismo face à realidade, em que, se a opinião pessoal parece comandar, se nota dificuldade de um compromisso que resista a infidelidades e ao choque do erro, uma forte adesão a fenómenos mediáticos denunciando uma sede de espetacularidade, a inserção da religião no contexto do mundo de consumo, a personalização, o desejo de comunidade, a preferência por modelos flexíveis e imediatos. Em suma, a sensação de que a religião é algo muito difuso.

No 10º A, os alunos admitem que são cristãos “pouco praticantes”, mas continuam a ter a fé “muito presente” no dia-a-dia. “O meu dia-a-dia não é bem focado na religião, mas sinto que sigo isso todos os dias. Os meus pais trabalham com coisas antigas e isso faz com que esteja ligada a alguma coisa. Se precisar de alguma coisa, sinto-me católica. Não é algo que tenha necessidade de expressar como ir à Missa todos os Domingos. Acho que a religião é mais ações do nosso do dia-a-dia do que propriamente dizer-se que andei na catequese, vou à Missa e etc.”, considerou uma das alunas. “A religião depende de pessoa para pessoa. Posso acreditar que Deus está sempre comigo. Enquanto que para ela, não. São diferentes opiniões e crenças. Aliás, também tem muito a ver com as nossas experiências de vida”, acrescentou outra. “A fé é uma coisa que muda de pessoa para pessoa. Cada um tem a sua abordagem e a sua relação é diferente. Não é preciso expressá-la todos os dias. Há momentos na nossa vida, em que a nossa relação com a fé é mais notória do que noutros. Nesses mesmos momentos, não significa que deixemos de acreditar que há sempre Alguém connosco. Quando precisarmos, podemos voltar a pedir ajuda”, disse uma outra aluna. “Creio que a religião vai para além de ir à Eucaristia. Ela é um sustento da fé, um encontro, que nos permite sair e agir no exterior”, acrescentou Francisco Cunha do 10º B.

Ainda na turma do 10º B, João Fernandes confidenciou que, atualmente, não pratica “muita religião” e Tiago Praça admitiu que tem praticado a religião “numa perspetiva mais individual”. “Em Portugal, sinto que se perdeu uma prática regular e não só da parte dos jovens”, considerou Tiago.

Dois dos rapazes do 10º A defenderam, ainda, que a religião é como “uma filosofia a ser seguida”. “Sigo o Cristianismo não indo à igreja, mas identifico-me com os ideais que ele passa às pessoas. Acho isso muito interessante. Vejo as religiões como filosofias que várias pessoas têm. O islamismo é outra, e etc.. Gosto mais do Cristianismo pela influência na cultura portuguesa”, explicou um dos alunos. “Vi na televisão que, no outro dia, um padre de Braga fez publicidade das apostas aos jovens. Os jornalistas foram falar com os jovens que conheciam esse padre para perceber o que achavam da sua situação e, muitos deles, disseram que ele tinha uma boa ligação aos jovens, recriando o que muitos padres estão a tentar fazer, hoje em dia. Esse padre passava a mensagem da Igreja de outra forma. Numa publicação, o padre explicou porque tinha aceitado ser gravado. Ele disse: ‘A primeira condição era deixar de dizer a toda a gente que vão morrer um dia’. Com essa declaração, penso que aquele senhor quer passar a mensagem da Igreja. Ou seja, formas de cativar/motivar jovens. Hoje em dia, é o que os jovens procuram”, exemplificou outro, acrescentando: “A maioria dos padres aborrecem-se porque seguem a mesma linha. Por vezes, torna-se necessário que as linhas tenham curvas. Os jovens querem isso para poderem estudar a matéria, mas, ao mesmo tempo, conseguir sair mais além daquele rumo, de forma a conseguir entreter-se com o tema.”

Alguns alunos também defenderam os métodos mais “cativantes”. “Do 6º ao 9º anos tive a mesma catequista. Nos anos seguintes, já gostava de ir à catequese porque nos cativava. Era engraçado. A maneira como ela abordava os temas era de forma a que nos mantivesse atentos”, contou uma aluna do 10º A. “Creio que os padres precisam de interagir mais com os paroquianos”, afirmou Francisco Cunha. “Creio que é necessário as pessoas sentirem-se integradas numa comunidade. Ou seja, haver uma perspetiva mais comunitária da fé. A verdade é que as pessoas podem ir à igreja para rezar, existe efetivamente ‘aquela’ comunidade, mas elas não são inseridas”, defendeu Tiago Praça.

Ao contrário dos colegas, Carolina Rodrigues admitiu que “nunca” percebeu a razão de ir à catequese ou à Missa. “Tudo girava em torno da ideia de pecado e punição. Não fazia sentido pensar que ‘tenho que fazer isto porque tem de ser’ ou ‘é como ir à escola’. Por isso, ao longo do tempo, o que se podia ter tornado uma fonte de curiosidade, tornou-se uma fonte de aborrecimento”, considerou, terminando: “Às vezes, vejo tantas pessoas más, que não sabem amar o outro como Jesus pedia, a ir à Missa. Isso choca-me.”

No final, o gravador desliga-se e há uma sensação de maior descontração na sala. Este ano, não há o som da campainha. Desta vez, não é necessário. A participação na entrevista dá direito, depois de alguns avisos, à saída mais cedo que o previsto. Voltar-se-ão a ver no dia seguinte. A próxima aula de EMRC realiza-se na próxima semana.

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