Imagine o seguinte cenário: uma senhora de 85 anos é encontrada inconsciente em casa e trazida para o hospital por uma equipa de ambulância. Chegando ao serviço de urgência, percebe-se que está em estado crítico. Apesar de todos os esforços com fluidos intravenosos, a pressão arterial continua perigosamente baixa. O médico da unidade de cuidados intensivos (UCI) é chamado para avaliar.
Ao examiná-la, nota que é uma pessoa frágil, provavelmente subnutrida, e que utiliza um andarilho para se deslocar, indicando dificuldades de mobilidade. Não existem registos médicos ou planos de cuidados avançados disponíveis. Um vizinho, que falou com os elementos da equipa de emergência, mencionou que a senhora quase não saía de casa nos últimos meses nem recebia visitas. Perante estes dados, a equipa do serviço de urgência começa a ponderar: valerá a pena submeter esta paciente aos cuidados intensivos? Será que esta intervenção é do seu interesse ou seria mais sensato focar-se em cuidados paliativos?
Agora, e se neste momento crítico o médico pudesse recorrer a um assistente de inteligência artificial (IA)? O clínico, com muitas dúvidas e a pressão de tomar uma decisão rápida, descreve o caso à IA do hospital: uma paciente idosa, frágil, sem histórico clínico disponível, numa situação de saúde grave. A IA, com acesso a bases de dados vastas e algoritmos avançados, analisa rapidamente o caso. Avalia os riscos e benefícios de várias opções: continuar com intervenções agressivas ou optar por cuidados de conforto.
Poucos minutos depois, a resposta da IA surge no ecrã do computador. A análise sugere que, para esta paciente específica, os cuidados intensivos têm uma baixa probabilidade de melhorar a qualidade ou duração de vida. Pelo contrário, recomenda uma abordagem paliativa, priorizando conforto e dignidade. A IA detalha os cálculos, apresenta os argumentos e regista tudo automaticamente no sistema do hospital.
Com esta informação em mãos, o médico do Serviço de Urgência telefona ao intensivista de serviço. A decisão é tomada: a paciente não será admitida na UCI. Opta-se por cuidados de suporte que respeitem o bem-estar da paciente e, ao mesmo tempo, preservem recursos para outros doentes que possam beneficiar mais de tratamentos intensivos.
Parece ficção científica? Talvez, mas este cenário pode estar mais próximo do que imaginamos. A inteligência artificial já está a transformar diversas áreas da medicina, desde o diagnóstico de doenças raras até à personalização de tratamentos oncológicos. No entanto, quando se trata de decisões tão delicadas como as relacionadas com tratamentos de suporte vital, surgem questões profundas. Podemos confiar numa máquina para avaliar a vida de alguém com a mesma sensibilidade que um ser humano? Por mais avançada que a IA seja, há sempre o risco de interpretações erradas, decisões baseadas em dados incompletos ou enviesados e, claro, a falta de compreensão das nuances emocionais, culturais e éticas que apenas um ser humano pode considerar. Além disso, como reconciliamos a confiança num sistema tecnológico com o direito dos pacientes e das suas famílias de serem ouvidos e participarem ativamente no processo de decisão?
Estamos prontos para integrar este tipo de tecnologia sem comprometer a ética e o respeito pela individualidade de cada paciente? A utilização de IA em cenários clínicos exige mais do que algoritmos sofisticados. Requer um quadro ético sólido, supervisão rigorosa e, acima de tudo, a capacidade de os profissionais de saúde combinarem o julgamento humano com as informações fornecidas pela máquina. É essencial garantir que a IA seja um complemento e não um substituto para a capacidade de empatia e discernimento dos médicos. E há ainda a questão das responsabilidades: quem será responsabilizado se algo correr mal – o médico que seguiu a recomendação da IA ou a equipa que criou o sistema? Estas são dúvidas que, inevitavelmente, terão de ser abordadas antes que a IA se torne uma ferramenta de decisão comum em cuidados intensivos.
Este “e se” não é apenas um exercício de imaginação. É um convite para refletirmos sobre o futuro da medicina e o papel que a tecnologia poderá ter naquilo que, no fim das contas, é o mais humano de tudo: decidir o que é melhor para a vida – e para a dignidade – de alguém. A solução talvez passe por uma colaboração equilibrada, onde a IA traga rapidez, precisão e uma análise baseada em dados robustos, enquanto os médicos continuem a ser os guardiões da empatia, da ética e da compreensão das complexas realidades de cada paciente. Afinal, o objetivo final deve ser sempre o mesmo: respeitar a autonomia, preservar a dignidade e promover o bem-estar de quem mais precisa.
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