A monstruosidade é, geralmente, uma má explicação. Como mostrou Hannah Arendt, todo o mal, que é como quem aponta para todos os fenómenos, deve ser entendido, em primeiro lugar, começando pela banalidade. Assistindo ao julgamento de Eichmann, um alto quadro nazi responsável pela Solução Final, que tinha fugido da Alemanha para a Argentina depois do fim da II Guerra Mundial até ser levado a tribunal em Jerusalém, Arendt afirmou ter estado não diante de um maníaco ou de um ideólogo, mas de um medíocre que tinha renunciado a pensar. Após a 6ª Convenção do Chega, que decorreu em Viana do Castelo no passado fim-de-semana, é possível que o primeiro problema esteja mesmo aí. Ainda em 2023, um famoso semanário português publicou um podcast intitulado “Entre Deus e o Diabo”, em que falava “sobre o caminho contraditório do líder do Chega para o extremismo político”. Aliás, num dos episódios da série, Vítor Matos discorre longamente sobre o facto de André Ventura indicar como o livro que mais o marcou, “O Doutor Fausto”, de Thomas Mann. Um clássico da literatura alemã, em que a personagem principal, também ela de nome André, faz um pacto com o diabo para atingir um conhecimento superior. Para o jornalista, esta escolha diz muito da psicologia de Ventura e, posteriormente, da personalidade pública do Chega. Mas essa abordagem parece criar uma barreira face ao fenómeno, um fechamento à compreensão. Se assim não fosse, como explicar o facto de um partido tão intensamente satirizado, tão politicamente recente e tão mediaticamente escrutinado, ousar testar-se numa sala onde o último partido a organizar o macro-evento nacional foi, precisamente, o grande rival à direita, o PSD? Ou, como explicar a estatisticamente comprovada grande adesão juvenil ao partido? É André Ventura e o Chega, o Fausto de que fala Goethe e Thomas Mann, ou aquilo que outro Fausto, neste caso Fausto Bordalo Dias, descreve como “roupa velha”, um prato requentado feito de farrapos?
“Eles não precisam da comunicação social”, explica uma jornalista mais experiente no acompanhamento do partido de extrema-direita. “Eles chegam a muito mais gente, e de forma mais direta, pelas redes sociais, por exemplo. Ainda esta semana, o André Ventura falou em dois podcasts sem o contraditório exigido a um jornalista”, continua. Por isso, é possível que também a cobertura jornalística destes momentos seja forçada a ir para lá das explicações convencionais. Talvez não por acaso, no dia anterior ao início da Convenção em Viana do Castelo, André Ventura falava, no Parlamento, sobre uma liberdade que ninguém controla e que, segundo ele, só é possível nas redes sociais.
Pedradas, choques e abalos
Pedro Frazão, deputado do Chega e assumido membro do Opus Dei, avança por um coliseu de Viana ainda timidamente preenchido, cumprimentando militantes. “Sr. Deputado, podemos fazer-lhe algumas perguntas?”, questionamos. “Deixe-me só cumprimentar aqui estes senhores”, responde.
No palco, cada uma das duas grandes mesas está decorada com um cartaz onde se faz uma promessa: “Limpar Portugal”. A entrevista começa, precisamente, por aí. Como pode um partido que se define como conservador, e por isso ligado a atitudes mais moderadas e cautelosas, se comprometer com algo tão revolucionário? Frazão fala de “pedradas comunicacionais”, porque, indica, “os portugueses têm de acordar”. “É uma ferramenta retórica”, explica.
Diogo Pacheco de Amorim, outro membro do grupo parlamentar do partido de extrema-direita, foi também entrevistado pelo Notícias de Viana. Com um percurso político que começou no MDLP – Movimento Democrático de Libertação de Portugal, passou pelo CDS – Partido do Centro Democrático Social, e pela fundação do PND – Partido da Nova Democracia, fruto de uma cisão dentro dos centristas no fim da liderança de Manuel Monteiro, é agora figura de proa do Chega e conhecido como o “ideólogo” e o “avô” do partido. Amorim começa por dizer que “o Chega quer limpar Portugal, mas não por uma via revolucionária”, mas rapidamente, depois de uma curta hesitação, tenta emendar a mão, recusando, por um lado, “um choque”, que afirma típico dos revolucionários, mas assumindo, por outro, que “o país precisa de um abalo”. “Chegados ao ponto a que chegámos, o país implica decisões drásticas. (…) Precisamos de uma revolução, no sentido cordato do termo”, acrescenta.
Ficámos na dúvida sobre se o que se diz é realmente para levar ou não a sério, se o Chega é ou não um partido revolucionário, ao que Pacheco de Amorim resolve dizendo: “O Partido fala para o povo comum, não para politólogos”.
Na entrevista a Pedro Frazão, quisemos saber como podem os cidadãos diferenciar entre uma simples “ferramenta retórica” e o início de algo mais perigoso. “Como podemos distinguir entre as ‘pedradas comunicacionais’ e aquilo que são exemplos históricos a partir dos quais se criaram regimes totalitários e autoritários?”, foi a pergunta. Cínico e colérico, Frazão afirma: “Não sei se está a falar da revolução bolchevique ou da revolução chinesa”. Quando lhe pedimos para ir direto ao assunto, atira: “Estou a responder-lhe com seriedade intelectual e espero que as suas perguntas também sejam feitas com seriedade intelectual”, caracterizando a pergunta como “jornalismo de pouca qualidade”. Confrontando com outros exemplos, como a ascensão de Mussolini, exclama: “Se me deixar acabar a minha resposta…”, para nunca mais comentar a referência.
“Moral e bons costumes”
No entanto, o que se nota à medida que o Centro Cultural de Viana do Castelo vai enchendo é, antes de mais, a profunda vulgaridade dos congressistas. É verdade que é possível ver alguns estereótipos – um jovem de bigode farfalhudo e estilizado, que junta ao pin do partido o da causa real, um homem que faz ponto de honra em mostrar a sua virilidade, outro, de suíças prolongadas, que se orgulha de se passear de samarra aos ombros, um pequeno grupo de participantes que se veste como se fosse participar num réveillon – mas as conversas são triviais, as aglomerações para tirar fotografias frequentes, e a amabilidade genérica no trato.
Um pouco depois da hora marcada, chega André Ventura. É sexta-feira. Não se espera nenhuma declaração na Convenção, mas, à entrada, Ventura fala aos jornalistas. O tom é sereno e contrasta radicalmente com aquele que adotará no dia seguinte quando se dirigir pela primeira vez aos congressistas. O líder que pede para que “na medida do possível, e se for de bom tom, esta Convenção seja dedicada às forças de segurança em luta”, não parece o mesmo que não terá problemas em levar o discurso político até à fronteira com o insulto gratuito e o preconceito mais injustificado, não menos de 24 horas depois.
Quando desce e percorre o caminho até ao palco da Convenção, os congressistas aplaudem, chamam por Ventura, erguem os braços e cantam “Pouco importa, pouco importa, se eles jogam bem ou mal; queremos é ver André Ventura a mandar em Portugal”. No centro, continua a frase: “Limpar Portugal: por Portugal e pelos Portugueses”.
À falta de melhor metáfora, o que se vê é em muito semelhante a um jogo de futebol, que o Chega e as intervenções políticas fazem elevar à derradeira final do campeonato do mundo, mais decisivo. O nome de Portugal, repetido em surdina, é só semelhante ao ambiente de um estádio de futebol durante um jogo da seleção. As promessas de reabertura do SEF – Serviço de Estrangeiros e Fronteiras e do fim do apoio a qualquer programa relativo à denominada “ideologia de género”, os apupos ao PS e as palavras contra a “lavagem cerebral da esquerda”, levam o congresso à apoteose como se de um golo se tratasse. Uma aparição de André Ventura, mesmo que a meio de um discurso, faz a Convenção parar os trabalhos para o aplaudir, como se tivesse entrado em campo o jogador mais querido dos adeptos, mas injustamente mantido no banco.
No meio dos delegados à Convenção daquele que, em muitas intervenções, foi definido como “o único partido que defende a moral e os bons costumes”, ouve-se congressistas que gritam “ladrões”, “chulos”, “vigaristas”. Mas um caso mais curioso é o comentário feito por Pedro Frazão às mais recentes declarações de André Ventura no Parlamento.
Na quinta-feira anterior à Convenção, numa troca de palavras com a bancada do Bloco de Esquerda, o líder do Chega afirmara: “Mentirosa é a tua tia”. Questionado sobre a cordialidade desta declaração, Frazão responde-nos que se trata de uma “expressão coloquial” que ele coloca no domínio da “boa educação”, e fala de outros casos como o do antigo Ministro Manuel Pinho ou de José Sócrates, personagens tão criticadas pelo partido e que o discurso oficial coloca como exemplos dos “bandidos que governaram Portugal”, mas que servem para justificar a legitimidade do recurso a essa expressão. Afinal de contas, foi Sócrates, então Primeiro-ministro, que, dirigindo-se à mesma bancada, disse a Francisco Louçã: “Mansa é a tua tia”.
Catecismos e Obras de Misericórdia
Na declaração de princípios do Partido Chega pode ler-se que o mesmo se afirma pela “defesa de um Estado neutro nas questões religiosas, mas reconhecendo e respeitando o papel decisivo desempenhado pela Igreja Católica na estruturação da civilização europeia e na História de Portugal”. E, no seu manifesto político fundador, refere a “herança da nossa raiz cristã”.
Na Convenção, Ventura falou de si como um convertido, como alguém que se tinha enganado na sua vida política anterior e se tinha redimido. Da mesma maneira, falou daqueles que de outros partidos se juntam ao Chega. “Reconheceram que erraram”, afirmou. Bruno Nunes, deputado, começou a sua intervenção por referir que “o Sr. presidente do partido, nunca estará ausente. Estará sempre presente no meio de todos nós”, um jovem militante da juventude Chega terminou a sua pedindo “que Deus guarde sempre Portugal”, e Bruno Bernardo, presidente do Conselho de Jurisdição Nacional, não teve medo de afirmar: “Daqui peço à Senhora d´Agonia que salve o país dos atuais perigos e naufrágios que o ameaçam”. Mas que relação é esta entre o Chega e o Cristianismo, e o Catolicismo em especial?
No meio de uma entrevista a Rita Matias, de 23 anos, deputada do Chega, a mais jovem em toda a Assembleia da República, e anunciada como mandatária nacional do partido para as eleições legislativas a 10 de Março, ouvimos algo curioso. Falando da necessidade da reforma da justiça – a que voltaremos mais à frente – e enquanto indicava a proposta de introdução da prisão perpétua e da castração química no ordenamento jurídico português, perguntámos se essas iniciativas não são contrárias à visão cristã do mundo. Matias responde: “Não, porque Deus é totalmente misericordioso e totalmente justo”. “Mas entende que, por exemplo, a castração química pode ser um ato de misericórdia?”, questionámos. “Sim”, respondeu. Também depois de voltarmos a perguntar se mantinha a declaração.
Ao deputado Pedro Frazão, perguntámos se o Chega se revia na Doutrina Social da Igreja, de Leão XIII ao Papa Francisco. A resposta foi pronta e afirmativa, tendo Frazão referido “inúmeras iniciativas legislativas que visam proteger os mais fracos”. No entanto, quando questionámos se o Chega acompanhava os recentes alertas do Papa Francisco acerca da crise migratória, o retorno foi bem mais dúbio. “Bom, aí podemos falar do catecismo da Igreja, que diz, muito especificamente, que os estados devem acolher os imigrantes, mas acolhê-los na medida em que protegem os seus próprios cidadãos perante os seus recursos económicos. Se consultar o Catecismo da Igreja Católica, é isso que está lá escrito, e é por isso que o Chega se rege”, indicou. Mais tarde, fizemos o que Pedro Frazão disse, mas, infelizmente, não encontrámos a citação referida.
“Nós sabemos de quem estamos a falar”
Na saga Harry Potter, Voldemort, a personagem que encarna o mal absoluto, é muitas vezes referida como “Aquele cujo nome não pode ser pronunciado”. No discurso final de André Ventura, quando o tema começou a ser a “subsidiodependência” e “aqueles que não querem fazer nada”, Ventura dirige-se à Convenção e diz: “E nós sabemos de quem estamos a falar”. Procurámos quem nos pudesse esclarecer o sentido da expressão, mas sem sucesso.
A verdade é que uma certa indefinição é visível no discurso do Chega. Voltando à entrevista com Diogo Pacheco de Amorim, e dentro da sua proposta de “revolução cordata”, uma das peças centrais é uma revisão constitucional.
“A Constituição é muito datada e muito detalhada, que representa um momento histórico e revolucionário, e só foi ligeiramente adaptada em 82”, aponta, afirmando que a lei fundamental do Estado português “cristalizou”. Como solução, defende uma “Constituição minimalista e sintética, que apenas garanta o mínimo de uma democracia liberal”.
Quando lhe pedimos para explicar uma das carências da Constituição, diz que ela “obriga a um sistema económico”. Questionado se se referia ao preâmbulo, onde se estabelece que Portugal deve “caminhar para o socialismo”, Pacheco de Amorim diz que “de modo algum”, e convida a “ver a questão dos sindicatos e, em detalhe, a constituição económica”. Fizemos, de novo, o que um deputado do Chega pediu, e, na Constituição, a única referência a sindicatos é o artigo 55º, em que “é reconhecida aos trabalhadores a liberdade sindical, condição e garantia da construção da sua unidade para defesa dos seus direitos e interesses”. Quanto à “constituição económica”, e imaginando que Diogo Pacheco de Amorim estivesse referir-se à Parte II sobre a “organização económica”, onde se dispõe a “coexistência do sector público, do sector privado e do sector cooperativo e social”, a “subordinação do poder económico ao poder político democrático” e a “liberdade de iniciativa e de organização empresarial no âmbito de uma economia mista”, não conseguimos perceber ao que ele estaria a referir-se. Talvez por falta de detalhe.
“Mas consegue precisar o que está mal e o que deve ser mudado?”, perguntámos. O deputado do Chega não dá nenhuma medida específica, mas explica que a Constituição deve unicamente garantir a “separação de poderes e o básico do Estado de direito. Tudo o resto deve ser deixado ao Governo” e isso, completa, “faz-se em duas páginas”. E quando inquirido acerca do facto de isso colocar em causa o pilar base constitucional dos direitos, liberdades e garantias, responde perentoriamente: “Os direitos, liberdades e garantias devem ser o direito à propriedade e o direito a dispor de si próprio”.
Ainda assim, um exemplo que Diogo Pacheco de Amorim dá para as insuficiências da Constituição é o facto de todas as “reformas estruturais de Passos Coelho terem batido no Tribunal Constitucional”, apesar de, mais à frente na entrevista, e confrontado com a ideia de que Cavaco Silva era um político liberal, chegar a dizer que este se limitou “a fazer as reformas estruturais que lhe foram exigidas pela União Europeia”.
No entanto, fomos ver o histórico de chumbos dados pelo Tribunal Constitucional ao Governo de Pedro Passos Coelho para entender o que estava a ser dito. Conseguimos contar 10. Mas é difícil imaginar que a inconstitucionalidade da suspensão dos subsídios de férias e de Natal de funcionários públicos e reformados com rendimentos acima dos 600 euros, o novo regime que estabelecia a mobilidade especial, a lei autárquica – alvo por duas vezes do Palácio Ratton –, a convergência das pensões do sector público e privado, os cortes na função pública, nas pensões de sobrevivência e nos subsídios de desemprego e doença, assim como a criação da contribuição de sustentabilidade, sejam, realmente, a melhor descrição de reformas estruturais.
“Não estou aqui para fazer um papel de vitimização, mas”
A Convenção parecia trazer a promessa de um Chega mais moderado, pronto para governar, mas embora a expressão “ciganos”, “castração” ou “perpétua” não tenha surgido no discurso do líder Ventura, as comunicações deste tiveram uma frase repetida à exaustão: “Eu não sei o que é que vocês pensam, mas eu sei que…”. O homem que garante dizer a verdade e que, em tudo, faz “promessa de honra”, “promessa solene”, “juramento solene”, “compromisso solene” e “compromisso que vale ouro”. O homem que promete um país livre do socialismo, mas que, em tudo, vê uma ocasião para anunciar medidas como a taxação dos lucros excessivos da banca. O homem que diz estar pronto para governar, mas cujas medidas colocam em dúvida a gestão financeira do país. O fim do IMI, o fim do imposto de circulação, a equiparação das pensões mais baixas ao salário mínimo e a recuperação do tempo de serviços dos professores, custariam mais de 11,5 mil milhões, 4,4% do PIB nacional, e nem o final de todos os apoios a fundações, o término das pensões vitalícias de ex-governantes e a abolição do rendimento social de inserção, compensariam tamanha ousadia financeira.
A verdade é que uma das alavancas do Chega é, pelo que pudemos ouvir na Convenção, a sensação de os seus membros serem os “mártires” que vêm libertar o país da alienação, as vítimas que carregam com o peso do “politicamente correto” e da “cultura de cancelamento”. Mas, como pode um partido com este estatuto chegar a encher o Centro Cultural de Viana, ter o seu evento magno a ser transmitido, muitas vezes em sinal aberto, por todos os canais do país, e assumir-se como um grande partido? Foi o que perguntámos a Rita Matias.
Começando por explicar que a “cultura de cancelamento, não só sobre não aparecer, mas também sobre a forma como deturpam o que é dito”, afirma que a base do Chega é o “cidadão comum”, “aquele cidadão que é cancelado e que sente que não pode exprimir-se sem olhar para o lado e pedir desculpa por dizer aquilo que pensa”. “As pessoas vão perdendo o medo e a vergonha, e vão engrossando as nossas fileiras”, acrescenta.
Talvez Rita Matias tenha razão. O que dá combustível ao Chega é a sensação que muitos dos presentes verbalizam de profunda injustiça e esquecimento. Atacar, humilhar e espezinhar, foram, aliás, os verbos que Matias escolheu para caracterizar quem aborda a realidade do partido. E é isso que os leva a apontar diretamente para inimigos, um tique de comunicação que se nota também no diálogo com a deputada. Sempre que falamos de alguma questão, o primeiro recurso é apontar o dedo, tal como aconteceu quando falámos acerca da já referida frase de André Ventura no Parlamento. Dessa vez, a desculpa foi “Quem não se sente, não é filho de boa gente” e o alvo foi “quem dirige os trabalhos” e os “meios de comunicação social oficiais”. O que nos levou a perguntar se, realmente, o Chega não assume o papel “da vítima de quase tudo”.
Rita Matias diz que não considera que “o Chega seja vítima no sentido pejorativo”. Algo que percebemos, pelo que se segue, que não passa de um artifício. “Não estou aqui para fazer um papel de vitimização, mas que é verdade que há um conjunto de poderes instalados que se juntam quando o Chega se levanta e os afronta, isso é real”, é a continuação da resposta. Matias fala de “ataque concertado” e, assim, o círculo de comunicação está fechado: o Chega é vítima, não porque é incompetente tecnicamente, mas porque diz “o que mais ninguém quer dizer” e tudo o que acontece ao partido deriva disso.
“Todos nós somos adeptos da corrupçãozinha”
Sinceridade, honestidade, lealdade, defensa e serviço ao povo são as qualidades apontadas por alguns militantes do Chega de um político “ideal”. André Ventura, de acordo com todos eles, tem-nas, mas é o “dom da palavra” que destacam. O descontentamento, o cansaço e o desespero de uma mudança, é que os leva a crer que seja eleito Primeiro-ministro nas eleições de março. “Nunca fui militante de nenhum partido e acredito que o Chega é a única salvação, porque tenho filhos para criar.”, afirmou Sandra Ribeiro, militante de Faro.
Das centenas de militantes que participaram na Convenção, o Notícias de Viana também entrevistou o jovem vianense de 19 anos Rúben Fagundes, que se tornou conhecido após a entrevista que deu a um outro órgão de comunicação social, afirmando concordar com tudo o que Ventura pensa, apesar de não saber o que lhe vai na cabeça, porque não lê os pensamentos das pessoas. Confuso? A culpa não é sua.
Depois de um convite de um professor de Educação Física que o levou a um jantar do partido, tornou-se militante e, dois anos depois, não consegue responder a algumas questões sobre as moções em votação. “Algumas moções falam da reintrodução do serviço militar obrigatório e da reintrodução do hino nacional nas escolas, como ‘um passo vital para incutir um sentimento de orgulho e pertença nacional’. Concorda? Porquê?”, questionámos. “Não é por não querer responder, mas não sei responder a essa pergunta, porque estou há pouco tempo dentro do partido”, afirmou.
A militante Sandra Ribeiro também não respondeu à mesma questão, não por estar há pouco tempo no partido, mas porque não leu todas as moções, à exceção das da sua distrital. “Não posso dizer se concordo ou não com as moções sem as ler. Não consegui lê-las todas, porque só foram colocadas na noite passada”, referiu, indo, no entanto, mais longe na seguinte questão: “Segundo dados do Instituto Nacional de Estatística (INE), os ‘imigrantes deram à Segurança Social sete vezes mais do que receberam’, e Portugal é dos países europeus com menor taxa de receção de migrantes. Faz sentido continuar a falar de uma política de imigração apelidada de ‘tudo ao molho e fé em Deus’, como indica uma das moções?”. “Não li a moção e não sei se os dados de que me falou são reais. Não lhe posso responder porque nem tudo o que vem na comunicação social é verdade”, respondeu.
José Abreu, de 24 anos, e Marco Abreu, de 18 anos, vieram de Braga e são observadores da Convenção. Afirmam concordar com o serviço militar. Contudo, “depende de como vai ser introduzido”. Sobre o hino, não se opõem. “Porque não”, disse um dos jovens. Em contrapartida, os militantes Dilano Chetone e Edmundo Gomes são “totalmente a favor”. Já no que diz respeito à corrupção e tachos, uns assumem que o Chega “não vai entrar por esses caminhos”, mas outros reconhecem que “não está imune”. “A sociedade portuguesa é muito permeável a estes sectores. Todos nós somos adeptos da corrupçãozinha”.
Deturpações
Em Viana do Castelo, o partido Chega viveu “problemas internos”. Ficou sem direção e, nas últimas eleições autárquicas, conseguiu representação na Assembleia Municipal mas, mais tarde, viu o representante tornar-se independente. Antes de começarmos a conversa com Elsa Abreu, atual presidente da distrital e que, no último dia da Convenção, carregava uma custódia do coração de Viana ao peito, questionou o Notícias de Viana sobre se o que ia dizer em entrevista, seria ou não “deturpado”.
Mostrava-se nervosa devido à “responsabilidade” de receber uma Convenção do Chega, mas assegurou, vezes sem conta, que era “uma honra”. De André Ventura, venera-lhe o dom da palavra, descrevendo-a como “extraordinária”. Militante desde 2019, garante que os deputados do Chega na Assembleia da República estão “alinhados” e “falam o que têm de falar”, rindo-se da atitude de André Ventura na tarde anterior para com a deputada do Bloco de Esquerda.
Sobre a política de imigração, a presidente da distrital fala em insegurança crescente. “Estamos a sentir mais assaltos e perseguições. Não se consegue sair à noite com a segurança que se tinha”, argumentou.
Ora, no dia 22 de junho de 2023, o Notícias de Viana realizou uma reportagem intitulada “Sensação de insegurança aumenta, mas ‘criminalidade não aumentou’” e, consultando os dados divulgados pelo Sistema de Segurança Interna e pelo Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, apurou que, embora seja verdade que a criminalidade geral e violenta tenha aumentado desde 2020, assim como os números da imigração, não só os valores da criminalidade estão longe de máximos, como os registados em 2013, com 8.554 ocorrências contra as 7.065 de 2022, como as percentagens de crescimento desta variável não encontram uma proporcionalidade direta na variação da imigração.
De facto, se de 2018 a 2021, a taxa de criminalidade desceu em todos os anos exceto no último – -6,2%, -0,6%, -12,0% e 6,0%, respetivamente – a taxa de imigração aumentou em todos eles – 17,3%, 22,6%, 22,3% e 17,8%, respetivamente – coincidindo, inclusive, com uma descida acentuada da criminalidade no ano no qual a tendência de aumento da população imigrante em Viana do Castelo voltou a superar os 20%, o que permite afirmar, com elevado grau de certeza, que não há qualquer fundo de verdade para afirmar ou sugerir que a criminalidade em Viana do Castelo seja cometida por imigrantes ou minorias étnicas, ou se situe em números históricos.
“There’s nothin’ wrong with goin’ nowhere” (1)
É Domingo. O final da tarde em Viana trouxe chuva, mas dentro do Centro Cultural é difícil perceber o que o Chega realmente é. A única certeza é que não só não é um partido antissistema, como é o partido do sistema por antonomásia. Nele junta-se tudo o que podemos ver nas restantes organizações partidárias, mas talvez com uma única diferença: no Chega tudo é elevado ao exagero. Da veneração ao líder, à demagogia e à inclinação voraz pela mentira. Dos militantes desinformados, aos deputados enraivecidos. Das promessas utópicas, à capacidade de deixar tudo de lado em favor do poder. Realmente, face a isso nada importa, pois como cantaria Fausto, o Bordalo Dias, “esta solha é lagosta / promovida / (….) e a salsicha enlatada / é (uma) alheira de Mirandela / (…) senão há tudo no mercado / há de tudo no hemiciclo”
Sem supressa, mal Ventura termina o último discurso, toca-se o hino nacional, mas, no final de A Portuguesa, lançada para o ar em tons épicos, arremessam-se confettis e ouve-se “Nowhere Fast” dos Fire Inc.. Uma letra com claro sentido sexual. Cada qual com a sua Internacional.
(1) “Não há nada errado em não ir a lado nenhum”, ou “… ir sem destino”, excerto da letra da composição “Nowhere Fast” da banda musical Fire Inc.
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