Pe. José da Silva Lima: “Nunca é tarde demais para fechar o livro que são os alunos.”

Depois de tantos anos de experiência e estudo, que leitura faz da pastoral da Igreja? Trinta anos de lecionação e estudo dão uma experiência sadia de alguma aprendizagem. Os alunos que tive a oportunidade de ter ensinaram-me que se aprende sempre, com os livros e com as pessoas com quem trabalhamos. Nunca é tarde demais […]

João Basto
4 Fev. 2021 13 mins
Pe. José da Silva Lima: “Nunca é tarde demais para fechar o livro que são os alunos.”

Depois de tantos anos de experiência e estudo, que leitura faz da pastoral da Igreja?

Trinta anos de lecionação e estudo dão uma experiência sadia de alguma aprendizagem. Os alunos que tive a oportunidade de ter ensinaram-me que se aprende sempre, com os livros e com as pessoas com quem trabalhamos. Nunca é tarde demais para fechar o livro que são os alunos, pois o futuro sorri neles. Parece-me que fui aprendendo que somos todos Igreja e que é com todos que a construímos. A experiência de estar sempre aberto a novidades, que na sala de aula são muitas. Assim é a Igreja, uma grande sala de aula, na qual todos aprendemos. Esta vertente é hoje muito incentivada pelo santo padre, mas torna-se visceral em toda a comunidade. Além disso, importa guardar e gerir o seu papel, sem confusões, para que haja ambiente sereno para todos. Também na Igreja, é necessário sentir que o Senhor é o Mestre de todos, para que todos possam jogar com suavidade o seu papel.

Parece-me que pastoralmente é necessário estar sempre em atitude de conversão, não só para connosco, mas na abertura aos demais. A conversão é de todas as horas, na perspetiva de que a Igreja é obra permanente do Espírito Santo em nós. Importa estar alerta para as situações que nos envolvem e até anestesiam, na docilidade ao Espírito que opera tudo em todos. Desta forma, estamos em sintonia com Deus, que nos ama.

Trata-se, creio, de contemplar a obra de Deus, e fazer da vida um culto espiritual para Sua glória (Rm 12, 1): “seja este o vosso verdadeiro culto, o espiritual”. A Igreja está em atitude incessante de ação de graças, por isso e para isso celebra todos os dias a Eucaristia. Esta postura acarreta a verdadeira dimensão da missão, que é obra do Espírito em nós, o que traduz a atitude orante do crente. A sua atitude missionária está nos atos de resposta sensata, nas respostas responsáveis que faz quotidianamente: esta atitude fala da cooperação humilde com Deus, numa relação incessante de amor. Os testemunhos de vida, na opacidade dos diferentes momentos históricos, são a linguagem credível que abre as comunidades ao amor.

Uma resposta sensata é a configuração histórica da Pastoral da Igreja. 

“Fazei vós também” é o título do seu manual de Teologia Pastoral. O que é que crê estar dentro deste pedido de Jesus?

Este manual resume as atitudes básicas a não descuidar na Pastoral, na prática atual da Igreja. Creio que o título encerra o último e resumido pedido de Jesus aos seus discípulos; entendo que o pede em todos os tempos. Como sabe, trata-se do discurso de Jesus na última ceia de Jesus (Jo 13, 12 e ss), o que se recorda sempre que se age em nome da Igreja. A atitude de serviço de Jesus deve impregnar toda a atividade da Igreja na sua História: “dei-vos exemplo, para que, assim como eu fiz, vós façais também” (Jo 13, 15).

Mais ainda. Neste pedido se concentram e encerram as atitudes e formas possíveis dos nossos atos responsáveis. Tudo está relacionado com o augusto sacramento da Eucaristia, permanente anamnese do que Jesus faz por nós, e que estamos vocacionados a fazer pelos demais. A Eucaristia não é um ritual mágico, mas a reactualização/recordação do Mistério Pascal sempre atuante no mistério da Igreja peregrina (cfr o primeiro capítulo do livro em questão).

É um pedido/missão. É feito para a totalidade da Igreja. Esta não deve ficar-se por teorias bonitas, mas alicerçar a sua identidade em atos, fazer. Assim, toda a nossa atividade, digo de todos, está no pedido final de Jesus. Importa atuar n’Ele, fazendo, o que implica uma unidade e intimidade no ser de cada um. Isto está bem evidenciado no documento do Papa Francisco, Cristo Vive. O que Jesus fez entre nós é continuado pelos Seus discípulos hoje.

Creio estar aqui um outro elemento de resposta. Fazer como Jesus fez. Isto é muito essencial, já que hoje há muitas propostas em todos os lados. Requer-se que os discípulos sejam suas testemunhas fazendo como Ele fez. 

Quais acredita serem os maiores desafios que os cristãos do futuro terão pela frente?

Parece-me que um primeiro desafio, também atendendo ao ambiente pandémico em que se vive, terá de ser cultivar a sua personalidade espiritual, isto é, velar pela dimensão interior e maior da vida de cada um. Tudo o que é físico e sensível passará; permanecerá o espiritual para sempre. Se uma personalidade não amadureceu nesta dimensão, dela não permanecerá nada. Um primeiro desafio é velar por esta dimensão estruturante das pessoas. Velar pelo que não passa. Ir construindo a “imagem do homem celeste”, como o escreve S. Paulo: “E assim como trouxemos a imagem do homem da terra, assim levaremos também a imagem do homem celeste” (1 Cor 15, 49). Dito de forma simples, precisamos de cuidar da alma, enquanto vivemos neste corpo de carne. Toda a Pastoral tem este fito.

Um outro desafio prende-se com a diversidade. Cada vez mais se acentua a ideia de uma grande diversidade de formas de agir humanamente. Teremos que respeitar a diversidade e entender a missão neste contexto. Não somos nós que vamos salvar o mundo, mas é Deus que salva o mundo. Somos cooperadores, “servidores de Cristo e administradores dos mistérios de Deus” (1 Cor 4, 1). Convém resistir a qualquer despotismo e enfrentar com mansidão a diversidade que nos faz ser construtores de um mundo plural. Este desafio está ligado a todo o movimento ecuménico em que participamos, abertura dentro do mesmo mundo, o cristão, e abertura serena a todas as outras formas de se aproximar do sagrado (Diálogo Interreligioso). Esta vertente aparece como fundamental no nosso tempo, pois as pessoas despertam muito mais para o que fazem os outros, num respeito visceral, remetendo para o foro pessoal e ação identitária de cada um. De facto, o foro interior é dimensão essencial de tudo o que se possa fazer a nível cristão.

Isto leva-me a um terceiro desafio que aponto em termos de formação. Em toda a Igreja é necessário desenvolver sempre as diversas estruturas de formação, pois a ignorância é o entrave maior à evangelização. Uma sociedade que acredita nas suas forças endémicas aposta na formação continuada dos seus membros. Neste tempo, esta questão reveste-se de interesse premente. As gerações mais novas vão acusar esta deficiência sentida no nosso tempo. Preparemo-nos para novas formas de formação avançada, recorrendo a uma imaginação que costuma inventar boas medidas, quando está apertada. Não se pode sucumbir ao marasmo de braços caídos. A era digital tem de abrir novas possibilidades. A formação/educação é a forma adequada de preparar um mundo diferente para entregar a quem connosco vive hoje. As novas gerações (as mais jovens) têm aqui um papel a assumir. Acredito que a novidade da formação apostará nas novas propostas dos mais jovens, cooperadores acreditados em todos os setores. A Pastoral tem de acreditar seriamente nesta vertente de novidade juvenil, sem retirar nada ao sadio relacionamento entre todos, entre todas as gerações. As JMJ em Portugal em 2023 serão um excelente acontecimento que a todos mobilizará. A Igreja terá um rosto rejuvenescido.

Na Fratelli Tutti, o Papa Francisco fala de “um estranho no caminho”. Qual é a identidade desse(s) estranho(s) na pastoral da Igreja?

 Leva-me a dizer em primeiro lugar que o Papa Francisco e os bispos diocesanos têm sido exímios nos seus documentos, colocando ao serviço da formação os mais variados textos. Este de que fala é a Carta Encíclica que o Santo Padre escreveu para todos, no ano findo. Levará tempo a descer ao entendimento do comum dos mortais.

Estamos perante um documento-chave para a compreensão de toda a família humana, focando particularmente o que nos faz ser fraternos e amigos. O que me interroga encontra-se no capítulo segundo do documento papal e surge na linha da meditação dos princípios que levam o papa a afirmar solenemente este programa para toda a humanidade. Medita-se a parábola do “Bom Samaritano”, considerando esta parábola como fazendo parte dos documentos da humanidade para alicerçar a defesa de certos valores inquestionáveis para o viver comum. Estar em sociedade e nela viver dignamente supõe a sensibilidade para todos os humanos, independentemente de suas crenças, de suas cores, de suas condições de vida. Respondendo à pergunta, o estranho é toda a pessoa que esporadicamente precisa do seu companheiro, independentemente de lhe ser familiar ou até de o ver pela vez primeira. Estranho é o que se distingue por ser diferente dos meus hábitos quotidianos, da minha família ou do meu grupo. Claro que o estranho é também o que de forma imprevista fica à mercê dos meus cuidados, num dado momento. Também o “estranho” pode ser até um inimigo que não tem boas relações com o circunstante. O princípio cristão do cuidado é para todos, pois o amor não olha às condições das pessoas para ser ativo. “Ao amor não lhe interessa se o irmão ferido vem daqui ou dacolá (…). Amor que sabe de compaixão e dignidade” (FT 62).

Um dos focos de seus estudos foi a religião popular. O que é que ainda falta compreender?

A questão merecia-me um livro para dar uma resposta mais adequada. De facto, interessei-me muito por questões de Religião Popular, no âmbito português e também no âmbito do que observava por países por onde me era dado andar. O universo da Religião do Povo é um universo demasiado simpático, pois todos nós participamos nestas formas de visualizar certos ritos e gestos, porque todos somos povo. Creio que ainda falta perceber que todas as nossas práticas são populares, por serem vividas no interior de um povo que encontra a toda a hora respostas mais ou menos adequadas para a expressão de respostas aos seus problemas. O povo, nós também, não é uma entidade desligada de nós. Tentamos salvar-nos todos em povo, não de forma solitária, mas com rituais que podem ser mais ou menos individualizados.

Falta ainda compreender e assumir o entrelaçar das gerações, criando plataformas onde todos possamos expressar os nossos medos, as nossas angústias, onde possamos encontrar modos de certa pacificação de comportamentos, umas mais vistosas, outras mais simples e por vezes ultrapassáveis. Esta tarefa é ingente para as comunidades: não se desprezem as formas mais simples e até desajeitadas, mas procuremos iluminar os itinerários dos crentes com a Palavra que levará a outras atitudes. Quero dizer que a atitude seja empática e transformadora e não de superioridade. No plano das nossas formas de aderir ao sagrado, só Deus pode julgar o que é mais sadio.

Uma forma de inovar é a de reestruturar o que parece mais velho, sempre no respeito como forma de entender o mais genuíno entre as práticas mais populares. Importa comungar com o povo, para poder transformar o povo do qual fazemos parte integrante, tendo apenas um modo diferente de praticar. Importa estar aberto ao que é diferente, respeitar o que se faz e sabiamente contribuir para soluções mais humanas, quando os ritos habituais nos parecem desproporcionados.

Importa muito sentir e celebrar como povo. As coisas transformam-se, se estamos uns com os outros e não em posições de superioridade. As nossas atitudes pastorais nunca sejam intervenções despóticas e pretensamente mais iluminadas, mas de comunhão operante. Penso assim desde que fui pároco em três aldeias (Carralcova, Grade e Cabana Maior) do concelho de Arcos de Valdevez, em 1980. Estas comunidades ensinaram-me logo o respeito por todos, construindo comunhão.

Quais acredita serem os traços fundamentais da relação com Deus enquanto comunidades do Alto Minho?

Somos um povo em caminhada de salvação. Um primeiro traço é o da dignidade. Também aqui não somos diferentes dos outros portugueses. Nas nossas práticas somos honestos para connosco mesmos. Não atrofiamos as nossas práticas só para dar nas vistas. É certo que o desenvolvimento da Comunicação Social nos colocou problemas, como colocou a outros. O que se faz tem ampla visibilidade e por vezes isto pode não ajudar a uma autenticidade permanente.

Um outro traço é o devocional. Ainda estamos num estádio em que as devoções podem suplantar o lugar que gostaríamos de atribuir às celebrações litúrgicas comunitárias, mas nota-se um incremento destas nas novas gerações, o que dá créditos de renovação e de perenidade. A Palavra de Deus está mais no centro de iniciativas que modificam o esquema popular. O momento que atravessamos é muito enriquecedor neste traço, pois assim se vai transformando o que tradicionalmente era só devocional.

Outro traço maior é o festivo, o que está muito posto à prova nesta pandemia. Na Alto Minho não há freguesia que não goste da sua festa e que para ela se prepare. A Religião favorece esta caraterística e desenvolve-a com todo o panteão do Santoral. Os minhotos são orgulhosos dos seus santos protetores. Por vezes a festa é caprichosamente diferente para dar nas vistas. Esta acentuada forma festiva realça-se em celebrações comunitárias cenicamente divertidas, com gestos, cores e tons muito específicos. Os coros e a Catequese prestam-se ao acentuar desta prática. Esta vertente alegre e extrovertida pode constituir-se em trunfo para a renovação.

Somos um povo intensamente afetivo, o que se visualiza em todas as nossas práticas religiosas. Gostamos de cantar muito e de extravasar os sentimentos para com Deus. Tratamos os Santos por nossos “santinhos” e a nossa linguagem religiosa está nimbada de afetos. Entoamos com plenos pulmões loas à Virgem Mãe. A afetividade mostra-se amiúde nas celebrações em honra da Senhora.

A relação com Deus, passa muito pelos Santos e sobretudo por Maria, Mãe. Está-se mais à vontade com aqueles que são da nossa espécie, mantendo uma certa distância com a Trindade três vezes santa, apesar de acarinhar Nosso Senhor, sobretudo em momentos de maior devoção. Um dos traços fundamentais é o lugar do Santoral, na sua piedade. Hoje já é notório o lugar de Cristo na estruturação ritual, dada a Pastoral eclesial nesse sentido.

Somos um povo que gosta de participar, neste sentido gostamos de nos descrevermos, narrando a nossa história, sempre que a isso somos convidados. Uma cultura muito interventiva, desde que solicitada. Gostamos de fazer e somos muito sensíveis aos serviços que hoje a Igreja solicita entre nós. Temos inscrita em nós uma dimensão diaconal de profundidade. Por vezes é pouco solicitada esta veia do nosso ser, e somos também um pouco tímidos ou pelo menos pouco ousados. Esta dimensão é a desenvolver na ação pastoral com todos. O que se vai fazendo devagar.

Tags Entrevista

Em Destaque

Notícias atuais e relevantes que definem a atualidade e a nossa sociedade.

Opinião

Espaço de opinião para reflexões e debates que exploram análises e pontos de vista variados.

Explore outras categorias