João Torres, de 45 anos, é padre e é coordenador da pastoral penitenciária de Braga. Natural de Arco de Baúlhe (Cabeceiras de Basto), defende que a sociedade precisa de educar o olhar com o qual pensa a realidade prisional, vendo para além do recluso e proporcionando autênticas políticas de reinserção.
Notícias de Viana (NdV): Ao final de tantos anos de trabalho em contexto prisional, o que diria que é a prisão?
Pe. João Torres (P.J.T): A prisão é um não lugar onde não há tempo, aquele tempo das coisas que acontecem, das mudanças que acontecem. Tudo é sempre igual. É uma não casa onde há um cheiro repleto de solidão, habitado por sombras! Onde há gente que pendurou a vida numa cama, onde não se dorme. Onde se afixam retratos que já não são os nossos. Onde há sapatos que não nos pertencem. É mais fácil de dizer o que não é, do que o que é. Não é um lugar de regeneração e ressocialização, muito pelo contrário, incentiva a comportamentos de revolta e de violência.
Nesta tentativa de resposta sobre o que é uma prisão, não quero deter-me, sequer, a falar de conforto ou desconforto, calor ou frio, de ser ou não obrigado a mictar e defecar à frente de companheiros de cela, de tomar ou não duche no mesmo espaço. Muito menos da existência ou não de luz natural nos interiores, de os exteriores terem ou não árvores, relva, dimensões adequadas ou equipamentos para atividades desportivas. Não quero, sequer, falar da comida ou das horas de acordar e deitar – quanto tempo têm os presos de ficar fechados nas celas, se podem ou não controlar quando as luzes se apagam e acendem. Acho somente que as prisões não têm que ser feias, porcas e más.
O estado atual das prisões é descrito pela antropóloga Catarina Fróis, no seu livro Prisões, como: “não dissuade a criminalidade, não serve de exemplo para o infrator, não reabilita nem degenera o sujeito encarcerado. Servirá, sobretudo, para que se tranquilize a sociedade e para demonstrar que a justiça está atenta e cumpre o seu dever, assegurando que quem transgride é responsabilizado e punido.” Esta prisão serve somente para animalizar o ser humano.
(NdV): Porque é que um padre se faz presente neste ambiente?
(P.J.T): A primeira razão é a mesma pela qual está em qualquer outro lugar. Está na prisão, porque lá estão pessoas. Pessoas que precisam de uma janela para Deus, que lhes abra uma janela para o mundo. O seu papel é muito mais amplo e variado do que o do simples oficiante de um culto. É uma presença real, mais do que uma ação esporádica. Contudo, a sua missão engloba toda uma série de atividades que vão desde a assistência espiritual à material, ao exercício da escuta empática, centrada na felicidade e na liberdade de quem é escutado. Tal missão necessita de disponibilidade, paciência e de entrega, já que essa assistência atrás das grades é exigente, tendo em conta a dor e o sofrimento que o cativeiro opera sobre os seus “usuários”, sejam eles reclusos, guardas prisionais ou técnicos. Dentro das prisões há mais mundo do que os reclusos…
O Assistente Espiritual e Religioso, em ambiente prisional, precisa de ser qualificado, disponível e competente. Precisa de ser profissionalizado. Um dos fatores que levou a um certo descrédito da antiga capelania prisional, foi o seu amadorismo e a falta de profissionalização dos seus agentes.
Os direitos constitucionais do exercício da liberdade religiosa estão muito maltratados nas prisões portuguesas. A dimensão espiritual não cabe nos esquemas daqueles que acham que o sistema é para reprimir. A Lei 252/2009, que regula a assistência espiritual e religiosa nos estabelecimentos prisionais, está de quarentena desde que foi criada: nunca foi regulamentada, nem parece inquietar as instituições que deveriam assumir isso como sua missão. A presença dos assistentes espirituais parece ser suportada, mas não estimulada. Numa colónia penal, o padre não faz falta.
(NdV): O que é necessário para uma autêntica política de reinserção?
(P.J.T): O sistema prisional devia ter dois objetivos fundamentais: proteger a sociedade de condutas criminosas e proporcionar aos reclusos uma hipótese de reabilitar as suas vidas. Devíamos, por isso, implementar medidas pedagógicas de sociabilização, tais como a releitura da história pessoal, a aquisição de competências de trabalho, a restauração de laços afetivos, a implementação de terapias de combate a doenças como o álcool, drogas e outras adições, bem como proporcionar um caminho espiritual de redescoberta de valores da vida em sociedade. Ordinariamente, os reclusos não dizem: “estou a passar o tempo”, dizem sim: “estou a matar o tempo”. E matar o tempo não é vivê-lo nem usufruir dele, é a aniquilação mais simples. Os reclusos cumprem a sua pena e, depois, saem sem grandes perspetivas. Saem com cadastro criminal, sem um currículo apresentável, sem qualificações pessoais e profissionais. Deveriam exercer um trabalho (remunerado e não obrigatório) orientado para a formação, para a produtividade, para a implementação da disciplina e da obediência, para formar hábitos e comportamentos, de maneira a reforçar a consciência dos deveres morais, familiares e sociais. O trabalho ajudaria a obter mais responsabilidades, conhecimentos, competências, ocupando o tempo de forma produtiva. Dar trabalho a reclusos é essencial para reduzir a reincidência no crime.
É necessária uma mudança de paradigma: passarmos de uma colónia penal para um lugar de reabilitação/reinserção (social/cultural/profissional), que esteja integrado com os sistemas de educação e de saúde. O ideal é que as prisões funcionem como pequenas comunidades, e que possam ter formação profissional e social.
(NdV): Ainda existe um modo muito condenatório/punitivo de olhar para a realidade prisional? De que modo podemos educar o olhar para outra perspetiva?
(P.J.T): A primeira ideia, amplamente generalizada na sociedade, sobre “o porquê” da prisão é que ela serve para punir pessoas que cometeram um crime e deve, para isso, ser um lugar de sofrimento, exclusão, penitência e até de degradação. A prisão é sempre para os outros.
O que está na lei, é que a condenação a uma pena efetiva não significa ir para uma prisão horrível que nos faça experimentar o inferno na terra. A pena é a perda da liberdade. O diretor de uma prisão norueguesa, o psicólogo clínico Arne Wilson, considera que se tratarmos as pessoas como animais quando estão na prisão, o mais certo é comportarem-se como animais.
Há gente que fez coisas horríveis, onde é mais natural e, porventura saudável, para alguns detestar, retaliar e vingar! Estamos sempre preparados para montar a forca a alguém. Partir-lhes as pernas, como se fossem simples bonecos. Já conheci gente que quer corrigir o mal que fez. E isso fez-me tanto bem! Faz-nos tanta falta um mundo ao jeito de Jesus, em que os imperdoáveis encontram perdão que os cure, e os “impecáveis” encontram verdade que os converta. Muitos reclusos valorizam muito as oportunidades que lhes são dadas. Temos de apostar neles; não podemos ficar com medo de que as coisas não corram bem, porque há muita gente com competências que só necessita que se lhes deem um caminho para poderem ser úteis no futuro.
(NdV): Como desenvolve a sua atividade na pastoral penitenciária? Que projetos desenvolve e promove?
(P.J.T): Na missão como Coordenador da Pastoral Penitenciária de Braga, tento imitar os primeiros três gestos do bom samaritano do Evangelho: ver, deter-se e tocar. Ver as feridas de um recluso, pois um recluso não é apenas o crime que cometeu. Um recluso é uma vida. O crime, um acontecimento nela. Que a marca. Que, muitas vezes, é consequência dela. Mas que não a apaga. É ela, a vida inteira já vivida, que deve tomar-se como lugar de encontro. Para além da celebração da Eucaristia, da formação cristã de alguns reclusos e da celebração do Sacramento da Reconciliação, existem vários projetos nos Estabelecimentos Prisionais de Braga e Guimarães. Tanto uma como a outra prisão, têm alguns voluntários que são autênticas pérolas humanitárias. Estamos a desenvolver, há vários anos, os seguintes projetos: projeto “Café com…”, que consiste em convidar uma pessoa para partilhar a sua experiência de vida à volta de uma mesa de café dentro do estabelecimento prisional; projeto de intercâmbio desportivo – futebol que consta da realização de jogos de futebol entre voluntários e os reclusos; projeto intercâmbio desportivo – jogos de mesa/salão, que abrange a realização de jogos e torneios de damas e xadrez entre voluntários e os reclusos; projeto “Capacita-te”, que consta de aproximar a população prisional da sociedade civil, levando informação e apoio na resolução de pequenos problemas que ficam pendentes no exterior; projeto “Cidadania – Nós e os Outros”, que compreende uma série de sessões no âmbito da reestruturação comportamental e social, promoção do bem-estar pessoal e a inclusão social, através de atividades dinâmicas, como debates sobre temas variados da atualidade; projeto “Rasgar Horizontes”, que realiza a projeção de um filme por semana; projeto “Correio da Esperança”, que consiste na correspondência escrita entre Grupos de Jovens e os reclusos, e o projeto “Mais Natal – Priscos”, que aposta na formação (construção civil) dos reclusos, com vista à aquisição de novas competências técnicas e sociais, no apoio à sua reinserção e integração social e profissional.
(NdV): Para além do contexto prisional, quais as realidades periféricas que revestimos de preconceitos? Quais as bases para uma mudança de paradigma?
(P.J.T): Temos ainda muitos preconceitos para com a comunidade cigana, para com os emigrantes e para com aqueles e aquelas que escolheram outras formas de vida fora do padrão normal. Não existem soluções para a mudança de paradigma. Existem caminhos que devem ser percorridos. É necessário que nos eduquemos uns aos outros no olhar crítico contemplativo. A contemplação torna-nos sensíveis, abre os nossos olhos para não sermos otimistas ingénuos nem pessimistas amargos, faz-nos descobrir outras formas de viver, introduz-nos no mistério do sofrimento do outro, inspira-nos a respeitá-lo e a admirá-lo. Devíamos casar com a vida uns dos outros, prometer viver, na doença e na saúde, na prosperidade e na pobreza, na paz e na guerra, a espantosa realidade de estarmos juntos neste mundo. Sou demasiadamente pobre para ter a pretensão de ensinar o quer que seja a alguém, mas acredito que o caminho é por aqui…
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