Pais drones e os outros

"O amor parental sufocante e hiperprotetor nas primeiras etapas da vida começa a marcar de forma desastrosa muitos jovens da geração Z". Maria Antunes, Sábado nº1601, 29-8 a 4-9 de 2024

Isabel Campos
19 Set. 2024 4 mins
Paisagem

O artigo de onde retirei a frase anterior causou-me perplexidade, tristeza, mas não me causou estranheza. Nos últimos anos como professora, comecei a notar um crescendo de atitudes bizarras por parte de alguns alunos, embora em número reduzido, diga-se, que entravam em pânico no dia do teste ou numa situação menos vulgar. Que não aceitavam um “não” à primeira, que procuravam impor a sua vontade e conseguir, pelo cansaço do adulto, levar a sua avante. Há anos, um aluno a quem perguntei, ao fim de várias vezes lhe ter dito que não podia fazer o que pretendia, se me achava parecida com a sua mãe, respondeu-me, prontamente: «Com a minha mãe, não. Mais com o meu pai. A minha mãe bem a levo…»

Estranheza e estupefacção causou-me a continuação do  artigo quando nos fala de jovens, se calhar os novos adolescentes, visto a juventude ir até aos 35 anos… que se fazem acompanhar do pai/mãe – mais mãe, certamente, custa-me dizê-lo, mas, se calhar, os pais têm mais bom senso – a uma entrevista de emprego, aos vinte e poucos anos. Demitem-se quando num emprego ouvem uma resposta mais dura. Pais/mães que escrevem aos professores de uma escola de ensino superior a pedir o prolongamento do prazo para a entrega de um trabalho ou a pedir satisfações por causa de algum episódio que traumatizou a sua “criancinha” estão a tornar-se episódios normais. Triste! Triste, mesmo!

Fico sempre um pouco “atarantada” quando vejo crianças mascaradas de princesas, fora da época de Carnaval, cheias de cetins, tules, lantejoulas, varinhas de condão. Irão saber qual a fronteira entre ficção e realidade? Há meses, enquanto esperava por uma pessoa amiga num estabelecimento de ensino superior, reparei numa aluna que se passeava com uma coroa de cartão dourado. Pensei que estaria no intervalo de alguma actividade teatral, mas não – apenas fazia anos e estava a assistir assim às aulas…. Triste, muito triste, mesmo preocupante.

Ouço com frequência: “Sentamo-nos nesta mesa? Preferes outra? Escolhe.” E a criancinha fica com um ar de felicidade, de pequeno reizinho/princesinha. A mãe embevecida. O pai, depende, ou também embevece, mas algumas vezes envergonhado e cansado, recorre ao seu amigo telemóvel para poder … comunicar. E os berros? E as birras? Esperneiam, incomodam quem não tem culpa, mas têm muita personalidade… Não, não é personalidade, é teimosia e falta de um “não”. Também gostava de ter tido “personalidade”, mas não me deixaram, como diz um amigo meu!

Tudo isto me fez recordar alunos que por mim passaram sem estas “frioleiras”, pelo que gostaria de vos falar de quatro alunos que me marcaram pelo trabalho que tinham de realizar antes e depois da escola. Nunca foram princesas nem príncipes. Tornaram-se adultos antes do tempo.

A Elvira que, na véspera daquele Natal, bem cedo, quando andava a ajudar a mãe a distribuir pão, como era habitual, foi atropelada por um carro que subiu o passeio. Sofreu várias fracturas. Quando regressou à escola, com os dois braços engessados, vinha com o pai de motorizada. Tratou-se do seguro, passou a vir de táxi. Ajudamo-la nas tarefas da sala de aula. Tinha 14 anos. Tinha de terminar o 6º ano. E conseguiu-o.

A Elisabete lavava a roupa toda da casa. Trazia, sistematicamente, as mãos queimadas pela lixívia. Numa tarde mais azarada, numa subida íngreme, não segurou o carrinho de mão carregado de roupa molhada, e foram meses no hospital com uma perfuração abdominal. O irmão, da mesma turma, não trabalhava nada em casa, nem na escola…

O Ricardo e o João, dois irmãos, pai preocupado, operário, também com gado e os campos para tratar. Era normal chegarem à escola cansados, sem terem tido tempo para os TPC: «Ontem, o camião com os fardos de palha demorou mais a descarregar». Recordo-os com imensa ternura, quando, no final do ano lectivo, com os fatos da comunhão, muito bem penteados, me vieram trazer um grande ramo de flores do seu jardim.

Não tiveram pais drones. Fui sabendo deles, excepto da Elvira, e sei que as suas vidas, embora com percalços, melhoraram.

Homenageio-os, aqui.

 

SUGESTÕES:

Ler – o artigo da revista Sábado

Ouvir e rir – Extremamente desagradável, Rádio Renascença

 

**(Escrito de acordo com a ortografia antiga)

Tags Opinião

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