Órgão fez-se ouvir em Viana do Castelo

De 10 a 18 de Julho, o concelho de Viana do Castelo acolheu o I Ciclo de Órgão. Em jeito de balanço, o Notícias de Viana entrevistou o Pe. Tiago Rodrigues, diretor do Secretariado Diocesano da Liturgia, responsável pelo evento, e Diogo Zão, diretor artístico do mesmo.

João Basto
29 Jul. 2021 15 mins
Órgão fez-se ouvir em Viana do Castelo

Pe. Tiago Rodrigues “Na Liturgia realiza-se o encontro verdadeiro e único com o Criador”

Pe. Tiago Rodrigues é natural de Melgaço. Foi ordenado a 15 de Agosto de 2014 e é, atualmente, Pároco de Cardielos, São Salvador da Torre, Vila Mou e Serreleis. É, também, diretor do Secretariado Diocesano de Liturgia. 

(Notícias de Viana) Na apresentação do Ciclo de Órgão falou dele como o rei dos instrumentos. Porque é justo falar dele nestes moldes?

(Pe. Tiago Rodrigues) Convém recordar que o órgão é um instrumento de sopro. Após nos habituarmos a ver tantos “órgãos” eletrónicos nas nossas igrejas, até nos esquecemos que o órgão é um instrumento de sopro, com ar soprado por um motor. O som produzido é tão diversificado quanto for o número de tubos que tiver. Ou seja, cada órgão contém centenas ou até milhares de instrumentos tais como flautas, oboés, trompetes, etc.. Cada som que escutamos é produzido por um tubo diferente. Podemos dizer que o órgão é um conjunto de instrumentos, uma autêntica orquestra. Sendo assim, podemos considerar que o órgão é especial entre os instrumentos musicais, sendo considerado, por W. A. Mozart como “rei dos instrumentos”.

Com esta afirmação não se desvaloriza todos os outros instrumentos e instrumentistas. Não seria sério da minha parte se o fizesse. Todos os instrumentos têm a sua especificidade, sonoridade e beleza. Contudo, o órgão de tubos é o mais completo, o mais poderoso.

(NV) Quais as razões que levam à relação profunda entre o órgão e a Liturgia? Porque é que ele assume um lugar único neste espectro?

(PTR) Na Liturgia realiza-se o encontro verdadeiro e único com o Criador, através de Jesus Cristo. Neste sentido, toda a celebração é um constante louvor ao Criador, que se digna estar presente no seio da humanidade, com todo o esplendor da Sua santidade.

Cabe à Igreja, comunidade de crentes, promover sinais que expressem da melhor forma aquilo em que acreditamos e que celebramos. Refiro-me, de forma especial, à música, mas também ao espaço litúrgico, à decoração, paramentaria e à celebração em si. Se a Liturgia é este encontro único, então não pode servir qualquer coisa, não se pode optar pelo banal, superficial, fraco… O melhor que escolhermos e fizermos é sempre limitado para expressar a beleza de Deus. Sublinho a necessidade da beleza e grandiosidade dos sinais visíveis, para que possam traduzir a realidade invisível.  

Neste sentido, e lembrando que o órgão é o “rei dos instrumentos”, percebe-se as motivações que levaram a esta relação tão próxima com a Liturgia. Podemos dizer que é uma forma de dizer o indizível.

(NV) Quando podemos dizer que o órgão está ao serviço da Liturgia?

(PTR) Se ajudar a comunidade, num clima de oferenda espiritual e expressão de louvor e de súplica, diante de Deus, então está a servir a Liturgia. 

(NV) Que passos ainda faltam dar na promoção do órgão na Liturgia?

(PTR) Falta, sem dúvida alguma, a formação. Enquanto não tivermos formação a sério na nossa Diocese, o órgão continuará a aparecer na mente das pessoas como algo do passado. Urge a criação de uma Escola Diocesana de Música Litúrgica e de ministérios laicais para a Liturgia. Cada vez há menos Sacerdotes e, consequentemente, mais Paróquias são confiadas a cada um. Torna-se muito difícil acompanhar todas as Paróquias como se o Sacerdote fosse responsável por apenas uma. 

Ao mesmo tempo, a sensibilização dos meus colegas Sacerdotes é fundamental. Investir na formação dos nossos leigos terá de ser a nossa prioridade, e nesta questão da música litúrgica, na formação litúrgica, será decisivo para a renovação.

Infelizmente, ainda existe o mito de que os jovens têm de cantar um certo tipo de música, inspirado na música mais ligeira ou até cópias e adaptações de temas mais populares do pop/rock. A verdade provada pela realidade que vivemos, mesmo onde se canta nesse registo, é que os jovens estão em número reduzido e a curto prazo. Em contrapartida, vemos cada vez mais jovens a estudar música (basta vermos a realidade vivida na Academia de Música de Viana do Castelo), cada vez mais jovens músicos a formar pequenos grupos musicais, com música de qualidade, muitos deles com formação cristã e percurso catequético, mas que, nas nossas Paróquias, teimamos em não orientar para a qualidade e para a especificidade da Liturgia. 

A Liturgia não pode ser algo “simplório” ou secundário. A Liturgia ocupa um lugar central na vida da comunidade, pois é o ponto de chegada de toda a atividade pastoral. Certo é que, para perceber que na Liturgia está o Senhor, há todo um caminho de catequese, formação pastoral que amadureça esta consciência. Contudo, se as celebrações não têm o esplendor que lhes é próprio, como poderemos falar de Deus com o banal? Atenção: quando me refiro ao esplendor, não recordo o barroco, os paramentos antigos, a música antiga ou o Missal de S. Pio V. Falo da beleza do bem celebrar, bem cantar e bem tocar um órgão. Para isto, a formação é fundamental. 

Diogo Zão: “A componente da formação de organistas é, talvez, a mais decisiva”

Natural de Esposende, onde nasceu em 1979. Após formação inicial em Piano e Órgão, respetivamente nos Conservatórios de Música Calouste Gulbenkian (Braga) e do Porto, prosseguiu estudos superiores no âmbito da Música Antiga, na Escola Superior de Música e Artes do Espetáculo do Porto, estudando Cravo com Ana Mafalda Castro. Desempenha funções de pianista acompanhador na Academia de Música de Viana do Castelo, destacando-se o trabalho realizado no âmbito do projeto coral VianaVocale. Desenvolve o mesmo trabalho com o Coro de Pequenos Cantores de Esposende, o Coro Ars Vocalis, o CouraVoce e com outras formações corais do norte do país. É membro fundador e cravista/organista do ensemble Cuore Armonico, que se dedica ao repertório renascentista e barroco. Integra, como cravista, o Alto Minho Ensemble. A par da atividade musical, é licenciado em Psicologia, pela Universidade do Minho, desempenhando funções públicas na área da Educação no Município de Esposende, desde 2004.

(Notícias de Viana) Como nasceu o Ciclo de Órgão? Quais os seus objetivos?

(Diogo Zão) O Ciclo de Órgão de Viana do Castelo, por iniciativa e grande entusiasmo do Pe. Tiago Rodrigues – que, é justo referir, tem sido um impulsionador da valorização da música sacra de qualidade –, surge da vontade de criar um evento cultural que proporcionasse e estimulasse a divulgação dos órgãos de tubos do concelho, assim como a sensibilização da comunidade, quer para a relevância central que pode ter na dimensão espiritual, ao serviço do culto e da liturgia, quer como património vivo, gerador de dinâmicas culturais. A par da realização de concertos, que são a face mais visível do trabalho e que, naturalmente, geram mais dinâmicas e envolvimento dos públicos, entendemos, com o seu contributo, que há dois aspetos centrais que nos parecem estruturantes para o caminho que apontamos desde o início, projetando o futuro. Um tem a ver com a questão patrimonial, mais material, digamos. 

Neste capítulo, pretendemos contribuir para que, através de uma equipa multidisciplinar, que inclua as diversas entidades com responsabilidades a este nível, mas também peritos, se possa dar início a um processo de reconhecimento sério e aprofundado acerca do parque organológico de Viana, idealmente alargando esta ação ao território da Diocese, que corresponde, do ponto de vista administrativo, à Comunidade Intermunicipal do Alto Minho. Aliado a uma análise criteriosa de cada contexto, entendemos que este será o ponto de partida para que se possam sinalizar prioridades de trabalho no futuro, nomeadamente ao nível do restauro, eventual aquisição e manutenção dos órgãos. Todavia, temos bem presente, como anteriormente referíamos, que o património deve ser “vivo”, ou seja – e entrando no segundo aspeto que consideramos central neste processo –, só faz sentido investir em restauros e/ou aquisições de instrumentos, se forem utilizados e, obviamente, com critério. 

Neste sentido, entendemos que a componente da formação de organistas é, talvez, a mais decisiva. Só com pessoas qualificadas a utilizar regularmente os instrumentos os podemos devidamente valorizar, dignificando-os como património valioso que são. Foi com esse intuito que, simbolicamente, promovemos nesta primeira edição do Ciclo de Órgão de Viana do Castelo, duas masterclasses: uma dirigida a alunos de piano da Academia de Música de Viana do Castelo e da Escola Profissional Artística do Alto Minho, e outra dirigida a organistas com prática de serviço litúrgico regular. Estamos em crer que estes dois contextos de formação, que poderão caminhar a par e de forma articulada, envolvendo a Diocese, as Paróquias, as Irmandades, assim como as escolas de ensino artístico especializado, poderão constituir-se como decisivos para, com pequenos mas sólidos passos, se poder alcançar este grande objetivo. Estamos convictos de que estas duas dimensões associadas poderão conferir a sustentabilidade deste grande desígnio de promover o órgão de tubos e a qualidade musical a ele associada.

(NV) Na apresentação do Ciclo de Órgão falou de um desconhecimento face a este instrumento. Para quem não o conhece, de que forma pode apresentar o órgão?

(DZ) O desconhecimento a que me referia na altura é relativo, sobretudo, ao parque organológico de Viana do Castelo. Conforme referi anteriormente, considero fundamental começarmos por este reconhecimento, de uma forma muito criteriosa. O Arciprestado de Viana do Castelo dispõe de 22 órgãos de tubos, mas apenas 6, os utilizados durante esta primeira edição do Ciclo de Órgão, estão em condições de funcionamento. Sabemos onde estão os instrumentos, mas em muitos casos, falta um conhecimento aprofundado sobre a sua origem, o seu construtor, as suas características e eventuais intervenções ao longo da história. 

Para apresentar o órgão, de uma forma sucinta, evoco a famosa expressão de W. A. Mozart, que o intitulava como o “rei dos instrumentos”. Certamente não por o achar mais importante do que os outros, mas pela sua complexidade e riqueza, quer ao nível da sua construção, quer pela imensa diversidade tímbrica e de produção sonora que pode apresentar. Não há um órgão igual a outro (ou dificilmente haverá). Com origem longínqua no séc. III a.C., em Alexandria (embora muito diferente dos exemplares que hoje conhecemos), a diversidade de modelos de órgãos de tubos é tal, que podemos ter desde um pequeno órgão portátil, com um teclado, um registo (um tipo de som) e um tubo por cada nota (variável, em função do instrumento), até um grande órgão sinfónico (a título de curiosidade, o maior do mundo, situado numa sala de espetáculos nos Estados Unidos da América do Norte, tem 7 teclados, 1 pedaleira, mais de 33 mil tubos, mais de 300 registos, medindo o tubo maior quase 20m). Verifica-se ainda muita diversidade no que respeita ao tipo de “escola” de construção: ibérica, alemã, francesa, italiana, inglesa, entre outras. No caso dos órgãos de tubos de Viana do Castelo, maioritariamente datam do séc. XVIII e início do XIX, tendo por base a prática de construção ibérica.

(NV) Como classifica a ligação entre a história da cidade e a promoção e destaque dado ao órgão? 

(DZ) Sobretudo nos séculos XVI a XVIII, a presença do órgão de tubos e de organistas nas igrejas de Viana do Castelo, em particular – mas não exclusivamente –, na Sé Catedral, é uma evidência e, diria, algo “natural”. Para além dos organistas, há registo, nos livros de receitas e despesas da então Igreja Matriz de Viana da Foz do Lima, da figura do mestre de capela, ao serviço das várias Irmandades e Confrarias lá sedeadas, que liderava toda a componente musical e educativa associada, assim como da presença de outros músicos (ex. charameleiros e cantores), particularmente nas celebrações mais relevantes, prática musical esta reconhecida e remunerada. Esta valorização conferida à música e à sua prática qualificada, que era generalizada a outras igrejas, Confrarias e Irmandades, foi-se dissipando ao longo do tempo. 

Particularmente nos séculos XX e XXI, constatamos que o órgão de tubos foi praticamente abandonado em Viana do Castelo, o mesmo acontecendo, de forma generalizada, com a prática musical mais criteriosa, em contexto litúrgico (salvo raríssimas e honrosas exceções). Para este facto muito deve ter contribuído, creio, o desinvestimento naquilo em que tanto insistimos: formação. Outro elemento que, inevitavelmente, veio contribuir para este cenário foi o aparecimento dos órgãos eletrónicos. Com um menor custo de aquisição e manutenção, e com alguns recursos que vieram facilitar a tarefa de um utilizador menos qualificado (e digo isto com total respeito por todos quantos se dedicam, maioritariamente de uma forma abnegada, a esta prática musical litúrgica), fizeram com que estes instrumentos, com uma incomparável menor qualidade, a todos os níveis, viessem silenciar os órgãos de tubos, que, ao longo do tempo, se foram deteriorando. Mesmo os órgãos que foram alvo de restauro no passado mais recente e que foram utilizados neste evento (igreja de Areosa, 1997; igreja da Misericórdia, 2010; Sé Catedral, 2018 e igreja de S. Domingos, 2019), não têm, infelizmente, uma utilização regular. Creio que o único instrumento em bom estado e com utilização permanente, é o da Paróquia de Serreleis, instalado na igreja em 2020. É, pois, esta realidade, que o Ciclo de Órgão pretende ajudar a inverter.

(NV) Uma das claras preocupações do Ciclo de Órgão é a formação. O que falta fazer e que sensibilidade faz falta criar, não só para o órgão em particular, mas para a música?

(DZ) Como anteriormente referido, entendemos que esta é uma das grandes prioridades, talvez mesmo a maior. E quando falamos em formação, o enfoque mais imediato é ao nível da qualificação das(os) organistas, mas há outras dimensões educadoras mais amplas para as quais gostaríamos de contribuir. Por exemplo, ao nível do património, material e imaterial. Quanto mais e melhor o conhecermos, mais estaremos sensíveis à sua preservação e divulgação. Um evento como o Ciclo de Órgão pode e deve explorar esta dimensão de diversas formas. Mas centrando-nos na formação dos intérpretes, estou em crer que há uma primeira sensibilização a fazer ao nível da própria Igreja. Organistas com melhor qualificação e preparação, quer ao nível da sua performance, quer do ponto de vista do conhecimento mais amplo acerca do instrumento e do repertório musical, não só contribuirão decisivamente para elevar a qualidade musical ao serviço do culto, da liturgia, como serão os primeiros a querer utilizar e valorizar os “verdadeiros” órgãos. E esta componente de formação pode e deve ser alargada, por exemplo, aos cantores e diretores corais, desde a formação musical básica, até ao trabalho mais específico de técnica vocal e de direção. Com programas bem desenhados, todos podem e devem ser incluídos, sem limite de idade e ao nível da formação prévia. Todos devem ser encorajados para esta nova dimensão, para esta outra forma de olhar para a prática musical em contexto litúrgico. Imbuídos do espírito, de qualquer crente, de louvar a Deus com o melhor e o mais belo, estou certo que, de todo este investimento, muito beneficiariam as comunidades paroquiais, mas também, numa lógica cultural mais abrangente, a região. Creio que, para cumprirmos este desígnio, será muito importante, para além do efetivo reconhecimento da sua importância, a congregação de esforços e mais-valias de várias entidades locais e regionais, públicas e privadas, numa lógica partilhada de construção coletiva de um bem comum. Existem bons exemplos inspiradores por toda a Europa e em Portugal. Estou certo que Viana do Castelo também será capaz!

Tags Entrevista

Em Destaque

Notícias atuais e relevantes que definem a atualidade e a nossa sociedade.

Opinião

Espaço de opinião para reflexões e debates que exploram análises e pontos de vista variados.

Explore outras categorias