O poder terapêutico das palavras

Marlene Ferraz
2 Out. 2024 4 mins
Nós, bichos sociais

E se escolhêssemos cuidadosamente as palavras que dizemos a nós mesmos e aos outros?

Somos feitos de palavras. Pode parecer uma suposição exageradamente poética, mas não. Estamos programados para dar sentido a tudo o que nos acontece e acabamos por criar uma linha narrativa que se traduz na nossa verdade. Como uma história. Um filme. Um bailado. E as palavras que decidimos usar marcam – indiscutivelmente – a forma como vivemos e nos relacionamos com o mundo (de dentro e de fora). Quando aplicamos a palavra “cão”, não é apenas o animal mamífero que está representado nas três letras, mas também as nossas experiências (favoráveis e trágicas) com o bicho de pelagem delicada e dentes afiados. Não temos uma ideia única da criatura doméstica, mas muitas. Tantas. Como as nossas cabeças. E para uns será a manifestação de partilha e lealdade, para outros a feridade e medo. Assim também o amor. A felicidade. A morte. A criança. O infinito. O conteúdo que despejamos em cada palavra vai alinhavar o que pensamos e sentimos e, portanto, o que fazemos. Mais do que o que nos acontece, somos como interpretamos o que nos acontece – e, neste exercício de criação de sentido, podemos fazer um apuramento intencional. Que episódios da nossa existência sublinharemos? Que descritivo estipularemos? Não é a mesma coisa dizer “tenho caído tanto” ou “levanto-me sempre que caio”. Estaremos a contar a nossa história com potencial? Ou com insuficiência? Usaremos as palavras para avivar a relação? Ou aumentar o conflito? Para desvendar soluções? Ou ampliar fatalidades? As neurociências têm apontado o efeito das palavras na máquina cerebral – por exemplo, juntar o advérbio “ainda” a uma constatação de incapacidade, “não aprendi a curar as feridas do coração AINDA”, suspende o enviesamento negativo e ativa o andamento da motivação para a aprendizagem. Concluiu-se, também, que vocalizar uma palavra considerada negativa como “não” leva a uma produção imediata de hormonas de stresse e interfere no funcionamento apropriado do cérebro (se ouvirmos um elogio, produzimos ocitocina, a hormona da ligação). Assim como sabemos que, quanto mais positivo for o nosso discurso interno (o diálogo que mantemos a cada minuto com a nossa própria pessoa), maior a probabilidade de garantirmos uma saúde psicológica florescente. Fica a pergunta: quando as coisas não correm como esperávamos, como cuidamos de nós? Inflamamos a culpa e adentramos a desistência? Engolimos o silêncio e inclinamos o corpo em vergonha? Aceitamos o imprevisto e tentamos melhorar? Já no século V antes de Cristo dizem que Antifonte, um filósofo grego, terá aberto um espaço para curar a alma e pronunciado que poderia “consolar os tristes com discursos adequados” ao movimentar, através da linguagem, as partes mais escuras do íntimo para as mais iluminadas. Também Górgias, com o mesmo ofício no mesmo chão europeu, terá afirmado que as palavras afetariam a alma e, através delas, poderia executar as obras mais divinas: tirar o medo, eliminar a dor, transmitir a alegria e aumentar a compaixão – o discurso assumia, assim, um poder terapêutico como a matéria curativa das farmácias. É uma suspeita facilmente confirmável: as palavras podem ferir e podem curar. Vivamos atentos, então. Afinal, estamos todos a contar uma história e cada palavra importa.

PRÁTICA

– ser intencional na escolha das palavras (pensar antes de formular o discurso – estas palavras vão encorajar e iluminar ou, contrariamente, ferir e desmotivar?)

– verificar a carga emocional antes de enviar a mensagem (acalmar, primeiro – estarmos com alegria, raiva ou tristeza influencia de forma distinta a composição do discurso)

– reformular positivamente as palavras (de “tudo me corre mal!” para “entre tantos acontecimentos bons, tenho alguns para resolver e melhorar”)

– filtrar o discurso negativo que nos pode chegar de fora (como as notícias)

– usar as palavras como exercício terapêutico (escrita expressiva durante 15 minutos sobre um episódio negativo que nos tenha acontecido)

– ler poesia (explorar uma linguagem menos funcionalista e mais introspetiva e libertadora)

– praticar o silêncio (o ato de contemplação de nos ouvirmos a nós, aos outros e ao mundo)

 

Floresçamos. Juntos.

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