Aura Miguel: “O Papa Francisco mostra-nos como é urgente a proximidade com quem está ferido”

Aura Miguel nasceu em Algueirão – Mem Martins, em 1958. Estudou Direito na Universidade Católica, com o sonho de ser diplomata, mas a vida trocou-lhe as voltas. Enquanto jornalista da Renascença, é a única vaticanista portuguesa, acompanhando, desde 1987, os diferentes Papas nas suas viagens pelo mundo. No final de janeiro, estará no Encontro Diocesano de Liturgia de Viana do Castelo. Antes disso, esteve à conversa com o “Notícias de Viana”.

João Basto
20 Fev. 2020 9 mins
“O Papa Francisco mostra-nos como é urgente a proximidade com quem está ferido”

Notícias de Viana (NdV): Tem acompanhado diferentes Papas, nas suas viagens, desde 1987. Como é que surgiu a oportunidade de acompanhar o sucessor de Pedro?

Aura Miguel (AM): Foi por mero acaso. Eu pensava seguir a carreira diplomática. Quando acabei o curso de Direito, o acesso ao Ministério dos Negócios Estrangeiros estava fechado e, então, fiz o que qualquer estudante de Direito costuma fazer: um estágio de advocacia. Arranjei, também, um trabalho temporário no Ministério da Educação e, depois, surgiu a oportunidade de ir trabalhar para o jornal “Semanário” – convite que me foi endereçado pelo diretor, Victor Cunha Rego – que, antes disso, era responsável pelo jornal “A Tarde” com o qual colaborei no último ano de Faculdade, a convite do Padre João Seabra.

Nunca imaginaria que a minha vida passaria pelo jornalismo. Sucede que, quando estava nesse jornal, me cruzei, um dia, com o diretor de informação da Rádio Renascença que me fez o convite para trabalhar na estação. Na época, achei aquilo impensável. Contudo, ele não desistiu. E disse-me algo que acabou por me aliciar – que precisava de uma pessoa que estivesse no meio de uma redação composta por especialistas em várias áreas e que fosse capaz de falar de Igreja com uma linguagem normal, isto é, sem ser demasiado “beata” ou teológica.

Acabei por aceitar, pensando que seria um bom desafio para quando fosse embaixadora. Ser embaixadora foi, de resto, a única coisa que planeei na minha vida. Paulatinamente, fui-me deixando conquistar pela rádio e, sobretudo, pelo seu ritmo vertiginoso, em que tudo está sempre a mudar.

Refira-se, contudo, que não vim para a Renascença para acompanhar o Papa, mas para falar de Igreja, na sua relação com o mundo, tal como já disse. Acontece que, quando lá estava com essa missão, aparece um Papa (João Paulo II) que começa a viajar pelo mundo e eu sou convidada para o acompanhar. Estreei-me no famoso Encontro de Assis de 1986 e a primeira viagem propriamente dita foi à Polónia, em 1987. Nosso Senhor lá saberá porquê.

(NdV): Já acompanhou mais de cem viagens papais. Fá-lo sempre com o entusiasmo da primeira? Encontra sempre “coisas novas” em cada viagem ou é fácil mergulhar numa certa rotina?

(AM): Paradoxalmente, a rotina existe em todo o lado. Quando entrei pela primeira vez no avião para acompanhar o Papa, pensei que ia encontrar colegas muito mais entusiasmados do que eu. No entanto, verifiquei que também ali havia gente aparentemente desinteressada. Isto significa que, mesmo ao lado do Papa, se pode viver uma missão como esta com um certo desinteresse. E isto tem a ver com o coração e não tanto com a idade. Há pessoas novas que se acomodam a uma vida rotineira e pessoas com mais idade com uma frescura invejável.

A verdade é que, passadas mais de cem viagens papais, eu já sei o esquema e como funciona cada deslocação e até recebo os discursos antes de serem pronunciados. Todavia, tenho consciência de que a aventura da vida é feita de acontecimentos inesperados e, por isso, em cada viagem há novidades. Tento sempre – não sei se consigo – não perder a novidade de cada viagem para a poder partilhar com quem me lê ou escuta.

Se o sucessor de Pedro, com a idade que tem, se dispõe, com sacrifício pessoal e com grande desgaste, a fazer várias viagens pelo mundo é porque elas encerram sempre algo de novo que não posso deixar passar ao lado.

(NdV): Que memórias guarda de João Paulo II? E de Bento XVI? 

(AM): João Paulo II e Bento XVI foram dois homens muito diferentes, em alguns pontos mesmo opostos.

João Paulo II foi eleito com 58 anos e introduziu uma mudança radical no modo de ser Papa. Tinha um desejo enorme de comunicar, de sair de casa. Inventou as “viagens papais” tal como hoje as conhecemos, inventou as Jornadas Mundiais da Juventude, trazendo uma grande frescura à Igreja. Tinha a normalidade de um homem que fazia passeios na montanha, praticava desporto, esquiava. Sei que, no Verão, chegou a encontrar-se com Cardeais, em Castel Gandolfo, de fato de banho junto à piscina. Nunca quis ser um super-homem. E isso percebe-se, de forma clara, na sua doença. Nesse momento, não se escondeu, mas expôs a fragilidade de um modo provocador, sobretudo no Ocidente. E, assim, teve um fim de grande liberdade, não querendo esconder essa imagem débil, comparativamente com a imagem vigorosa de outros tempos. Isto é algo próprio de um homem totalmente livre, porque capaz de dar tudo à Igreja e ao mundo.

Bento XVI foi eleito com 78 anos, já depois de ter pedido a resignação e de pensar retirar-se para descansar. Contudo, assumiu o seu chamamento e, depois de eleito, surgiu com uma docilidade e um sorriso que eu imagino que seja parecido com o de Nossa Senhora aquando do seu sim, isto é, da ordem do sobrenatural. Guiou a Igreja num período dificílimo, enfrentando, entre outras coisas, com grande coragem e determinação, o drama dos abusos sexuais de menores por membros do clero. E foi incompreendido e mal-amado pela Comunicação Social.

Bento XVI ajudou – e muito – a consolidar as razões da fé num tempo em que já não se pode ser cristão sociologicamente. Tem, de facto, um pensamento que julgo que será amplamente valorizado e estudado. E foi essa inteligência humilde que o levou a resignar quando se sentiu sem forças, mostrando perceber que a Igreja não é dele. E isso foi também um ato de enorme liberdade, tal como o de João Paulo II, embora de modos diversos.

(NdV): Irá participar no Encontro Diocesano de Liturgia de Viana do Castelo, abordando a temática do acolhimento no pensamento e na ação do Papa Francisco. Como olha para o seu pontificado? É o Papa que a Igreja e o mundo precisam neste tempo?

(AM): Creio que Nosso Senhor sabe muito melhor do que nós aquilo de que precisamos em cada tempo. No pontificado de Francisco, prevalece a proximidade e a misericórdia. Depois da frescura de João Paulo II e da consolidação das razões da fé de Bento XVI, Francisco mostra-nos como é urgente a proximidade com quem está ferido. O Papa Francisco é o Papa do abraço e do beijo, muito próximo de todos, ainda que com uma preferência pelos que mais precisam, numa opção capilar pelos mais pequenos. E, neste aspeto, tenho de dizer que é muito o que sabemos do Papa, mas ainda há muita coisa que ele faz em termos de proximidade que não passa pela Comunicação Social. Há uns anos, por exemplo, pediu a um padre de uma paróquia de Roma para, no dia de Páscoa, fazer visita pascal aí, porque tinha saudades. E, de surpresa, apareceu às portas das pessoas a levar Cristo Ressuscitado.

É alguém que sabe que foi eleito Papa para dar a vida e não para poupar a vida. Fá-lo, naturalmente, com a ajuda de Deus. Sabemos que passa horas diante do Sacrário e que coloca os seus problemas “debaixo” de uma imagem de São José. É, de facto, um homem profundamente simples, consciente de que é Deus quem guia a Igreja. Um dia, numa viagem, a bordo do avião, perguntaram-lhe se achava que a Igreja o ia seguir nas suas reformas. E ele disse: “Está enganado, não é a Igreja que tem de me seguir, mas sou eu que tenho de seguir a Igreja!”.

O Papa Francisco troca-nos os conceitos. Diz-nos que não podemos viver de rendimentos.

(NdV): Recentemente, na viagem de regresso à Bulgária e à Macedónia do Norte, foi surpreendida pelo Papa Francisco que assinalou a sua centésima viagem ofertando-lhe uma caixa de bombons. Que significado teve este momento?

(AM): Achei que não era possível, até porque já me tinha felicitado na viagem de ida. Contudo, no regresso, depois de responder às nossas perguntas – eu até já tinha desligado o microfone –, disse que se assinalavam as minhas cem viagens papais e ofereceu-me um saco de rebuçados aromatizados com sabor a rosa, flor que tem uma grande importância na Bulgária. O que achei mais extraordinário foi o seu cuidado e a sua gentileza. Quando o Vaticano tem tantas coisas “religiosas” que oferece, em todas as viagens, a chefes de Estado e outras individualidades, houve a preocupação de me oferecer algo personalizado. O Papa Francisco é mesmo assim: presta atenção a cada pessoa concreta.

Ainda não consegui comer os rebuçados, cuja data de validade termina em agosto próximo. Vou tentar ganhar “coragem” para fazê-lo.

(NdV): Há alguma viagem que lhe tenha ficado especialmente gravada?

(AM): Cada viagem é única, como já referi. Contudo, retenho especialmente as viagens que João Paulo II, Bento XVI e Francisco fizeram a Portugal. Foram momentos inesquecíveis em que fiz a experiência em português. Foram, além disso, viagens muito ligadas a Fátima como não poderia deixar de ser, pois não é possível olhar para Papa sem pensar em Fátima e vice-versa. Mesmo de entre estas viagens, há um momento que me marcou profundamente: poder acompanhar a revelação da terceira parte do segredo de Fátima.

(NdV): A nível pessoal, o que tem recebido no desempenho desta missão de acompanhar os Papas nas suas viagens?

(AM): Tenho, sobretudo, crescido na fé. Na verdade, nunca deixo de dizer o que devo, mas faço-o sempre como católica. Além disso, o meu trabalho permite-me perceber, claramente, como a Igreja tem uma palavra a dizer sobre tudo. Se Cristo está vivo, ele responde sempre. Onde há deserto, aí tem de estar a Igreja. Tento, por isso, partilhar as minhas experiências com quem me ouve, na certeza de que a minha missão é uma graça, mas também uma responsabilidade. É nesta linha que irei, com muita alegria, a Viana do Castelo, no próximo dia 18, intervir no Encontro Diocesano de Liturgia.

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