Liturgia e catequese familiar No judaísmo rabínico (o único que sobreviveu dos muitos judaísmos do tempo de Jesus à data da destruição do Templo de Jerusalém no ano 70 d.C.), a Páscoa é uma celebração familiar, é uma liturgia doméstica. O principal rito (ou sacramento, se esta palavra nos chamar ainda mais a atenção) do […]
Liturgia e catequese familiar
No judaísmo rabínico (o único que sobreviveu dos muitos judaísmos do tempo de Jesus à data da destruição do Templo de Jerusalém no ano 70 d.C.), a Páscoa é uma celebração familiar, é uma liturgia doméstica. O principal rito (ou sacramento, se esta palavra nos chamar ainda mais a atenção) do judaísmo não é celebrado na sinagoga, mas em casa. E a Igreja, que nasceu sob perseguição e sem edifícios de culto, reuniu-se durante séculos (os primeiros e mais frutuosos séculos da história do cristianismo) em casas particulares, as domus ecclesiae, onde o pater famílias ou o presbítero ou ancião presidia à liturgia. Obviamente este cenário encontra-se hoje transformado e os presbíteros do rito latino não são pater familias. Mas as famílias, mesmo sem presbíteros, são domus ecclesiae, igreja doméstica. Podem e devem, pois, celebrar a Páscoa em casa. Reúnam-se na noite da Vigília, acendam as velas do Baptismo, rezem o Precónio, escolham e leiam as leituras da Vigília, façam as preces, beijem a Cruz, abracem-se como se não houvesse amanhã e partilhem uma bela refeição; bela pelo ambiente, não necessariamente por aquilo que está sobre a mesa.
Afinal depois de tantos anos a lutar por estabelecer a catequese familiar (que se tornou obrigatória nalgumas paróquias através da dissolução forçada da catequese dita “tradicional”), ela foi imposta pela conjuntura de saúde pública. Mas funciona mesmo? Sim e Não. A catequese deve ser sempre familiar, mesmo que seja tradicional. Já os antigos catecismos, os de 1992, traziam um caderninho com folhas destacáveis para os pais usarem em casa. Talvez teria sido preferível renovar esse material sem fazer alternância entre a sessão “paroquial” e a sessão “familiar” da catequese, visto que, em muitos casos, redundou numa participação apenas quinzenal na Eucaristia e numa sessão quinzenal de catequese. Por outras palavras, para muitos, a catequese familiar resultou em ter apenas metade da catequese e da participação comunitária que tinham. E a “escola paroquial de pais” ou reuniões de pais para preparar a “sua” sessão de catequese doméstica, não se fizeram ou depressa acabaram, na maioria dos casos. A estrada era promover a sessão familiar semanal em paralelo com a catequese paroquial semanal. Porque as crianças não vão à escola semana sim, semana não. Perdão. Agora não vão mesmo.
Felizmente, nalgumas famílias recuperou-se o lugar do antigo “oratório”. Pela primeira vez na vida, rezaram juntos em casa. O Crucifixo, a Bíblia, a Senhora de Fátima e uma vela juntaram-se numa mesa e recordam-nos que há uma outra vida que não se vê, mas se sente.
Renovação pastoral do Tríduo e da Visita Pascal.
Alguns profetas e videntes já clamam que esta crise vai aprofundar as raízes espirituais das pessoas, das famílias e das paróquias. Pessoalmente, acho que não. Passado o choque das semanas ou meses de reclusão, as Igrejas vão encher- se durante alguns Domingos, para dar graças a Deus por aqui andarmos, os que por aqui ainda estivermos ou estiverem. Mas, depois, os dias de sol continuarão a convidar-nos a ir para a praia ao Domingo, ou a ficar na cama nos dias de chuva. E o fim da Quaresma e início da Semana Santa voltará a ser a melhor altura do ano para os estudantes irem ter todo o tipo de experiências a Benidorm e lugares afins. Esta nova sede de espiritualidade não vai durar, em termos colectivos. Algumas pessoas e famílias estão mesmo a reflectir sobre os valores da vida e irão introduzir mudanças sérias e permanentes. Pelos piores motivos, alguns nunca esquecerão esta pandemia. Mas, como sempre, para alguns carpe diem significará aproveita o tempo e, para outros, goza o dia.
O que é certo e inegável é que este ano não haverá Visita Pascal. Nem no Alto Minho! Quem diria! Porque é uma tradição secular – dizem alguns. Tão secular que…, começou talvez em fins do século XIX e não se consolidou em muitas paróquias até depois da Segunda Guerra. A Visita Pascal é, obviamente, um gesto próprio de uma sociedade abastada. E, nesse sentido, tem virtudes e defeitos. Nalgumas paróquias, a Missa de Páscoa é mais triste que um funeral, porque não há grupo coral disponível…, não há leitores nem acólitos e, sobretudo, há a pressa de sair com o compasso. Não são poucos aqueles cristãos que trocam a sexta-feira santa pela segunda de Páscoa, para poderem estar na visita pascal. Tendo nascido na Venezuela, sempre me impressionou que, em Portugal, não se nota a diferença na sexta-feira santa: os comércios estão abertos, a maior parte dos que frequentam a Eucaristia aos Domingos não participam na celebração da Paixão e há um alvoroço desmedido nas ruas e nas casas, como se não fizéssemos memória da morte do Senhor Jesus.
Talvez este ano, passados Abril e Maio, algures pelo verão, possa ser possível ensaiar uma forma de visita pascal à italiana. Na Itália, o pároco visita as famílias em data mais ou menos combinada; nas cidades, colocam um aviso na porta dos prédios a dizer que virá no dia tal… E essa visita demora algum tempo: reza com a família, lê a Bíblia, abençoa cada um e cada uma individualmente. E é na Quaresma! Talvez algumas paróquias se decidam a transformar a Visita Pascal numa pequena liturgia familiar, durante todos os Domingos do Tempo Pascal, e assim o pároco visitará mesmo cada casa, evitando-se o odioso de parecer que envia um mensageiro a recolher os envelopes dos dinheiros, quando há vários compassos em simultâneo.
A situação que vivemos não é feliz. Mas é um sinal dos tempos que temos de ler e fazer frutificar. É triste e doloroso o jejum eucarístico ao qual fomos forçados. O Cardeal Ratzinger, no seu livro Deus próximo de nós, recorda como alguns santos e ascetas praticavam um jejum eucarístico voluntário. Esta pode ser ocasião para valorizarmos mais e melhor a Quinta-feira santa, o Corpo de Deus e a adoração eucarística semanal. O que ficar, depois deste drama, em termos pastorais e espirituais, ficará por um esforço acrescido. Acomodamo-nos depressa.
O dia do Senhor é o Senhor dos dias
A expressão é de um anónimo do século IV (Pseudo-Eusébio de Alexandria, Sermão 16: PG 86, 416): “o dia do Senhor é o Senhor dos Dias”, quer estejamos em casa ou na igreja. O rabino Avraham Heschel, comentando a desgraça da destruição do Templo de Jerusalém, afirma que o “sábado é o templo do espaço”. Para nós, o Domingo é o Templo do Espaço: “Dia do Senhor, Dia de Cristo, Dia da Igreja, Dia do Ser humano/ família, Dia dos Dias”, como lhe chamou João Paulo na sua Carta apostólica Dies Domini.
Mas não percamos tempo a lamentar a impossibilidade de celebrar o Domingo e a Páscoa. Estes tempos questionam a nossa fé e a nossa verdadeira vivência de que “os adoradores que o Pai deseja devem adorá-l’O em espírito e verdade” (Jo 4,23). Até porque “o Filho do Homem até do sábado é senhor” (Mc 2,28).
Errata: Na primeira parte do artigo, por lapso, indiquei que as igrejas orientais e ortodoxas neo-calendaristas usam o calendário gregoriano na Páscoa, mas, nesta celebração, seguem também o calendário juliano. Este ano, por exemplo, celebrarão o Domingo de Páscoa no dia 19 de Abril, uma semana depois da Igreja Católica e igrejas protestantes.
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