É legítimo sentir nostalgia, tristeza ou saudade pela impossibilidade de “celebrar a Páscoa” neste ano, dadas as terríveis circunstâncias que estamos a viver.
No entanto, este é um momento de delicada responsabilidade social e cristã e a única atitude moralmente correcta é permanecer em casa e evitar o contacto social, para travar o alastramento da pandemia. Já bastam os profissionais de saúde, de segurança e outros obrigados a permanecer ao serviço, com horários desumanos, para ajudar quem precisa, bem como trabalhadores cujas ocupações são essenciais para evitar um colapso ainda maior de bens e serviços.
Há muita hipocrisia por aí, por parte de indivíduos e instituições, e não deixa de provocar revolta ouvir as entrevistas e comentários em que se fala da “economia” como uma super-estrutura independente das “pessoas”, que vale por si mesma e que tem de ser salva a toda custa. A economia são as pessoas concretas, de carne e osso, que verão os seus empregos e rendimentos coarctados por esta terrível situação. E isso pode trazer situações diversas de fome e doença. Todos – mesmo todos – teremos de corrigir o nosso conceito de “qualidade de vida”, prescindir de certos luxos que, afinal talvez não trouxessem muita qualidade…, de modo a garantir que as necessidades básicas serão satisfeitas e, nessa medida, reaprender outros prazeres da vida simples. É curioso que autores laicos como Matt Haig (“O mundo à beira de um ataque de nervos”), Alain de Botton (“Status Ansiedade”) e Duane Elgin (“Simplicidade voluntária”), para além dos activistas ambientais como a Greta Thunberg (“A nossa casa está a arder”) nos alertem para a urgência de estilos de vida sustentáveis, que estamos agora a praticar de forma forçada. Mais curioso ainda é que, ao ensinar-nos novos paradigmas de consumo que se opõem ao coleccionismo e açambarcamento de bens em ordem a uma maior fruição do que realmente já temos, cunharam uma formulação laica de um princípio completamente evangélico, “ter menos é ter mais”. Em inglês, para alguns, tem sempre outro charme: “less is more”.
Com estas premissas, é legítimo, mas também inútil, lamentarmos a constrição de permanecer em casa durante a Páscoa. Compreendo o sofrimento dos cristãos, das comunidades e seus pastores, por não poder celebrar o Domingo de Ramos e o Santo Tríduo Pascal. Eu também sofro. Mas tenho dúvidas de que esta multiplicação de missas online seja a atitude correcta. Agora, até à segunda-feira há missa nalgumas paróquias… virtuais. Com pertinência, o bispo espanhol de Teruel y Albarracín, António Gómez Cantero, não escreveu só a explicar o quê e como celebrar, mas também a sugerir mais contenção nas redes sociais por parte do seu presbitério. Obviamente há publicações e celebrações de qualidade muito duvidosa.
Além disso, as novas “missas do facebook” (com ou sem “filtros” activos) promovem a mesma – ou pior – passividade litúrgica de que nos queixámos nas paróquias. Pessoalmente creio que faz mais sentido que uma família se reúna a ler a Bíblia, rezar as preces em conjunto e fazer um momento de silêncio e comunhão espiritual com o ecrã desligado do que a “assistir” aos enquadramentos forçados no telemóvel. Ou, então, que vejam na tv. Por outro lado, se calhar, não há motivos para estar “tão” tristes por este ano não celebrarmos a Páscoa comunitariamente. Daqui podem vir reflexões e mudanças que todos desejávamos fazer, mas que não tínhamos nem coragem nem desculpas legítimas para as pôr em prática.
A data da Páscoa: intransferível?
Não é verdade. A data da Páscoa não tem de ser monolítica. De facto, não é. Lamentavelmente, os cristãos celebram a Páscoa em duas datas: o calendário gregoriano para a Igreja Católica, igrejas protestantes e as orientais/ortodoxas neo-calendaristas e o calendário juliano para as igrejas orientais e ortodoxas vetero-calendaristas. O resultado é que todos os anos os cristãos celebram a Páscoa em dois domingos diferentes, com quinze dias de intervalo. Quantos peregrinos vão a Jerusalém para celebrar a Semana Santa e, ao chegar, descobrem, que a Vigília Pascal é de manhã e não à noite, porque ainda seguem o horário pre-conciliar do status quo nos lugares santos?
Durante os primeiros séculos, a data da Páscoa foi motivo de grandes controvérsias. Um grupo de cristãos orientais, chamados quatordecimanos, celebravam a Páscoa no dia catorze de Nisan, como os hebreus, quer fosse um Domingo ou um dia da Semana. Para além destes, outro grupo, conhecido como os protopasquitas, celebravam a Páscoa sempre no Domingo a seguir aos hebreus. Porém, como o calendário judaico da época era bastante confuso, por vezes, estes grupos celebravam a Páscoa um mês antes dos outros cristãos e mesmo antes do equinócio. Por isso, o Concílio de Niceia (325 d.C.) prescreveu que a Páscoa fosse celebrada no Domingo seguinte à primeira lua cheia da Primavera. Passando à frente delicadas e complexas questões de calendário e contagem, importa recordar que o mesmo Concílio de Niceia proibiu que a Páscoa cristã coincidisse com a Páscoa hebraica. E isso obrigou a alguns reagendamentos durante alguns anos… Finalmente, foram os mesmos judeus, já na Idade Média, que (nos) resolveram o problema quando definiram que a Páscoa judaica só pode ser celebrada nas segundas, terças, quintas e sábados. Por conseguinte, a data da Páscoa, mesmo pretendendo sermos fiéis à cíclica celebração da Paixão e Morte de Jesus, não tem de ser forçadamente numa única data.
Recordemos que a autoridade apostólica (e científica, na época) do Papa Gregório XIII, através da bula Inter gravíssimas, decretou que, no ano 1582, depois da quinta-feira 4 de outubro, seria sexta-feira… 15 de outubro! E, dessa forma, corrigiu um erro de dez dias no equinócio da Primavera. Portugal foi um dos primeiros países a aderir à Reforma gregoriana, naquele mesmo ano. Mesmo sendo certo que a mudança que o Papa pôs em curso não afectou a regularidade do Domingo, chama-nos a atenção de que o calendário é uma realidade convencional que pretende ajustar ou ordenar uma realidade natural. Por conseguinte, é passível de melhorias e alterações. Em jeito de provocação, fica esta pergunta sem resposta: enquanto a marcação dos meses, semanas e dias pretende organizar os ciclos de rotação e translação da Terra à volta do sol, a sequência dos dias da semana é apenas uma realidade cumulativa ou tradicional. Isto é, este dia em que escrevo é quarta-feira porque ontem foi terça-feira e, assim, de forma ascendente, até à perda da memória colectiva. Pois é nessa perda da memória colectiva que fazemos um acto de fé ao considerar que após séculos de invasões bárbaras e muçulmanas, de guerras entres povos na Europa e no Oriente…, nunca se perdeu a perfeita sequência dos dias, desde o Domingo da Ressurreição do Senhor. Portanto, é possível que, em termos sequenciais e rigorosamente históricos, hoje não seja quarta-feira e daqui por quatro dias não seja Domingo. Mas até pode ser que sim.
Tendo isto claro, este ano punha-se uma questão de ordem prática. É impossível celebrar comunitariamente a Santa Vigília da Ressurreição. Seria possível alterar a data. Mas não é possível saber quando seria seguro celebrar novamente a Vigília. Portanto, na incerteza, mantém- se a data. Foi o que Roma fez pela mão do Cardeal Sarah. Roma locuta, causa soluta. Mas Roma tinha a legitimidade de decidir doutro jeito, ao contrário do que escreveu o cardeal Sarah, mas, simplesmente, não era oportuno reagendar a Páscoa. Por outras palavras, não estejamos particularmente tristes por pensar que só na noite de 11 de Abril é que o Senhor ressuscitou. Além disso, e se as circunstâncias o permitirem, grande parte da Vigília Pascal pode ser celebrada na Vigília de Pentecostes; ou mesmo por altura do Corpus Christi, etc…¬
(continua na próxima edição)
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