Estaremos prontos para cuidar (verdadeiramente) do florescimento da nossa comunidade?
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Sabemos da complexidade da natureza humana. Multiplicada. Contraditória. Imprevisível. Sabemos, também, que somos um bicho relacional (e que o maior determinante da nossa felicidade é a ligação favorável que criamos com os outros). Sabemos, ainda, que somos obrigados a conviver – inevitavelmente – e nem sempre estamos prontos para cuidar do florescimento da nossa comunidade. Até porque tendemos a separar o mundo privado e o mundo coletivo, como se metidos em redomas isoladas, mas, se pensarmos com clareza, tanto um como outro se tocam com indiscutível profundidade. Reparemos: o que nos acontece na gaveta mais íntima também influencia a gaveta mais pública e o que acontece na gaveta mais pública influencia – claro – a gaveta mais íntima. Estamos todos ligados por um fio. E seria tão proveitoso se cada um de nós cuidasse – nem que levemente – desse lugar único a que todos pertencemos.
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Conversemos sobre as transferências no universo laboral, a exemplo. Tantas as bocas a avisarem que o trabalho não deve ser levado para casa, nem a casa para o trabalho, mas tantas as cabeças a comprovarem que um e outro se misturam, porque, humanamente, somos um só. E tantos os corações a confidenciarem o incómodo no exercício profissional, enfiados num ambiente potencialmente amargo e, provavelmente, sem saberem (ou poderem) convocar a mudança. E se nos pudéssemos inspirar todos os dias, uns e outros, uns aos outros? E se decidíssemos ser colegas mais atentos e apreciadores? E se nos alinhássemos numa máquina produtiva, sim, mas, ainda assim, humanizada? Para sermos criadores dedicados e encantados, temos de sentir, antes de tudo, que importamos – se o chão laboral cultivar o suporte e o incentivo, com a responsabilidade de verificar o bem-estar de cada criatura humana do grupo, é mais provável (e há evidência científica para isto) que a empresa evolua favoravelmente. Nenhum colaborador será mais produtivo num clima de desinteresse ou austeridade, até porque somos feitos de histórias e afetos.
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Falemos de números. O país com maior risco de burnout da União Europeia – um estudo recente do Laboratório Português dos Ambientes de Trabalho Saudáveis (2023) indica que oitenta por cento dos trabalhadores apresentaria, pelo menos, um sintoma de esgotamento. O terceiro com maior nível de stresse da Europa – segundo o Eurobarómetro (2022), dois em cada cinco portugueses experienciariam stresse, depressão ou ansiedade por circunstâncias ligadas ao trabalho. A lembrar, ainda, que teremos uma das semanas laborais mais longas e um dos salários anuais mais baixos. Mais números? Os da perda de produtividade por absentismo e presentismo pelo comprometimento da saúde psicológica dos colaboradores, com um custo elevado para as empresas (e para a vida humana em si). E não basta o procedimento de diagnosticar, provavelmente medicar e esperar que o trabalhador-pessoa volte a ser proveitoso no mesmo cenário empresarial – importa inovar na cultura e na promoção de condições que valorizem e estimulem o capital humano, sem uma industrialização do sofrimento (em que viramos a cara se virmos o desencanto nos olhos do colega do lado, apenas movidos por metas de crescimento, percentagens de fabrico e posições mais iluminadas).
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O Butão avançou com o conceito de Felicidade Interna Bruta por considerar que, para se avaliar o desenvolvimento dum país, não bastariam critérios económicos, mas também ambientais (conservação) e humanos (qualidade de vida). O maior interesse deveria ser termos cidadãos colaboradores com harmonia, capazes de produzir valor (material e imaterial) na empresa e fora dela. Sim, porque se tivermos o compromisso de cuidar dos nossos, também esses nossos levarão para casa (e para a comunidade) a matéria positiva que incorporaram no trabalho, num ciclo sustentável e potenciador da humanização. É possível (dizem os entendidos) intersetar uma estratégia de negócio e um profundo compromisso com as pessoas, porque, se sentirmos que pertencemos (e que somos vistos e estimados), estaremos mais disponíveis para dar o nosso melhor. Todos somos líderes, de alguma forma. Das nossas crianças. Dos nossos amigos. Dos nossos colegas. De estranhos, até. E se nos destinarmos a ser líderes – e há um livro de Simon Sinek com o título “Os Líderes Comem Por Último” – com mestria na competência humana (mais do que na competência técnica, até), dedicados a favorecer a união e a realização das pessoas, estaremos a propagar esta vontade de fazer florescer a nós mesmos, aos nossos e a toda a comunidade.
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PRÁTICA
– ter presente que estamos todos ligados e beneficiaremos mais se este lugar comum for feito de tolerância, cuidado e entreajuda
– cuidar de nós para podermos cuidar melhor dos outros (investir em autocuidado e incluir – diariamente – na agenda o que nos faz sentir bem)
– colocar as relações humanas como prioridade (cultivaremos mais felicidade e sucesso se tivermos vínculos positivos e íntimos os outros)
– reconhecer esta ligação entre o mundo privado e público (e como se influenciam, inevitavelmente), pelo que importa participarmos todos na criação de uma comunidade mais próxima e humanizada
– dar o nosso contributo para locais de trabalho seguros e saudáveis (até pelo tempo que dedicamos ao nosso ofício – mais de um terço do nosso dia), com abertura para a partilha, para o sonho, para a falha e para a evolução
– celebrar o encontro humano neste mundo complexo, incrível, trágico e temporário: porque, na verdade, os outros somos nós
Floresçamos. Juntos.
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