O Bem Comum

Marlene Ferraz
6 Nov. 2024 5 mins
Nós, bichos sociais

Estaremos prontos para cuidar (verdadeiramente) do florescimento da nossa comunidade?

Sabemos da complexidade da natureza humana. Multiplicada. Contraditória. Imprevisível. Sabemos, também, que somos um bicho relacional (e que o maior determinante da nossa felicidade é a ligação favorável que criamos com os outros). Sabemos, ainda, que somos obrigados a conviver – inevitavelmente – e nem sempre estamos prontos para cuidar do florescimento da nossa comunidade. Até porque tendemos a separar o mundo privado e o mundo coletivo, como se metidos em redomas isoladas, mas, se pensarmos com clareza, tanto um como outro se tocam com indiscutível profundidade. Reparemos: o que nos acontece na gaveta mais íntima também influencia a gaveta mais pública e o que acontece na gaveta mais pública influencia – claro – a gaveta mais íntima. Estamos todos ligados por um fio. E seria tão proveitoso se cada um de nós cuidasse – nem que levemente – desse lugar único a que todos pertencemos.

Conversemos sobre as transferências no universo laboral, a exemplo. Tantas as bocas a avisarem que o trabalho não deve ser levado para casa, nem a casa para o trabalho, mas tantas as cabeças a comprovarem que um e outro se misturam, porque, humanamente, somos um só. E tantos os corações a confidenciarem o incómodo no exercício profissional, enfiados num ambiente potencialmente amargo e, provavelmente, sem saberem (ou poderem) convocar a mudança. E se nos pudéssemos inspirar todos os dias, uns e outros, uns aos outros? E se decidíssemos ser colegas mais atentos e apreciadores? E se nos alinhássemos numa máquina produtiva, sim, mas, ainda assim, humanizada? Para sermos criadores dedicados e encantados, temos de sentir, antes de tudo, que importamos – se o chão laboral cultivar o suporte e o incentivo, com a responsabilidade de verificar o bem-estar de cada criatura humana do grupo, é mais provável (e há evidência científica para isto) que a empresa evolua favoravelmente. Nenhum colaborador será mais produtivo num clima de desinteresse ou austeridade, até porque somos feitos de histórias e afetos.

Falemos de números. O país com maior risco de burnout da União Europeia – um estudo recente do Laboratório Português dos Ambientes de Trabalho Saudáveis (2023) indica que oitenta por cento dos trabalhadores apresentaria, pelo menos, um sintoma de esgotamento. O terceiro com maior nível de stresse da Europa – segundo o Eurobarómetro (2022), dois em cada cinco portugueses experienciariam stresse, depressão ou ansiedade por circunstâncias ligadas ao trabalho. A lembrar, ainda, que teremos uma das semanas laborais mais longas e um dos salários anuais mais baixos. Mais números? Os da perda de produtividade por absentismo e presentismo pelo comprometimento da saúde psicológica dos colaboradores, com um custo elevado para as empresas (e para a vida humana em si). E não basta o procedimento de diagnosticar, provavelmente medicar e esperar que o trabalhador-pessoa volte a ser proveitoso no mesmo cenário empresarial – importa inovar na cultura e na promoção de condições que valorizem e estimulem o capital humano, sem uma industrialização do sofrimento (em que viramos a cara se virmos o desencanto nos olhos do colega do lado, apenas movidos por metas de crescimento, percentagens de fabrico e posições mais iluminadas).

O Butão avançou com o conceito de Felicidade Interna Bruta por considerar que, para se avaliar o desenvolvimento dum país, não bastariam critérios económicos, mas também ambientais (conservação) e humanos (qualidade de vida). O maior interesse deveria ser termos cidadãos colaboradores com harmonia, capazes de produzir valor (material e imaterial) na empresa e fora dela. Sim, porque se tivermos o compromisso de cuidar dos nossos, também esses nossos levarão para casa (e para a comunidade) a matéria positiva que incorporaram no trabalho, num ciclo sustentável e potenciador da humanização. É possível (dizem os entendidos) intersetar uma estratégia de negócio e um profundo compromisso com as pessoas, porque, se sentirmos que pertencemos (e que somos vistos e estimados), estaremos mais disponíveis para dar o nosso melhor. Todos somos líderes, de alguma forma. Das nossas crianças. Dos nossos amigos. Dos nossos colegas. De estranhos, até. E se nos destinarmos a ser líderes – e há um livro de Simon Sinek com o título “Os Líderes Comem Por Último” – com mestria na competência humana (mais do que na competência técnica, até), dedicados a favorecer a união e a realização das pessoas, estaremos a propagar esta vontade de fazer florescer a nós mesmos, aos nossos e a toda a comunidade.

PRÁTICA

– ter presente que estamos todos ligados e beneficiaremos mais se este lugar comum for feito de tolerância, cuidado e entreajuda

– cuidar de nós para podermos cuidar melhor dos outros (investir em autocuidado e incluir – diariamente – na agenda o que nos faz sentir bem)

– colocar as relações humanas como prioridade (cultivaremos mais felicidade e sucesso se tivermos vínculos positivos e íntimos os outros)

– reconhecer esta ligação entre o mundo privado e público (e como se influenciam, inevitavelmente), pelo que importa participarmos todos na criação de uma comunidade mais próxima e humanizada

– dar o nosso contributo para locais de trabalho seguros e saudáveis (até pelo tempo que dedicamos ao nosso ofício – mais de um terço do nosso dia), com abertura para a partilha, para o sonho, para a falha e para a evolução

– celebrar o encontro humano neste mundo complexo, incrível, trágico e temporário: porque, na verdade, os outros somos nós

 

Floresçamos. Juntos.

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