‘No tempo da pressa existencial, como é o nosso, um dos grandes desafios consiste precisamente em não ceder à tentação do fast-food espiritual.’

1. Quase nunca é fácil, com o devido respeito, dar respostas satisfatórias às exigências espirituais dos nossos tempos. A pluralidade de opiniões, experiências e espiritualidades New Age, muito em voga nas livrarias e bibliotecas das novas catedrais, bem como a ideia tábua-rasa que cada um tem de e para si, transforma profundamente o panorama em que nos movemos. Esta […]

Notícias de Viana
10 Jan. 2020 4 mins

1. Quase nunca é fácil, com o devido respeito, dar respostas satisfatórias às exigências espirituais dos nossos tempos. A pluralidade de opiniões, experiências e espiritualidades New Age, muito em voga nas livrarias e bibliotecas das novas catedrais, bem como a ideia tábua-rasa que cada um tem de e para si, transforma profundamente o panorama em que nos movemos. Esta transformação é de tal modo séria e grave que chega a conduzir aos consultórios de psicólogos e psiquiatras pessoas vítimas dos mais impensáveis irrealismos. Não raramente submersas em promessas de libertação espiritual, enleadas por vozes, energias, cartas ou profecias cujo cumprimento teima em adiar-se, estas pessoas deparam-se perante vazios existenciais cada vez maiores e mais difíceis de suportar. 

2. Nem tudo o que reluz é ouro, diz o adágio popular. Acrescentaremos que nem tudo o que parece religioso ou do âmbito da espiritualidade faz bem à alma. Importa, mais do que nunca, purificar esta busca legítima e necessária do sentido mais profundo da vida, manifesta na adesão a momentos de meditação, oração, silêncio e fuga do reboliço diário. Os passeios à beira-mar, no campo ou na montanha são ocasiões belíssimas de encontro com a interioridade que nos sustém, direi que são mesmo tão necessários como o pão para a boca. Mas, não sendo fins em si mesmos, compreender-se-ão como meios em vista a alcançar um fim bom: a paz interior, o equilíbrio, enfim, a saúde que permite viver bem e ser feliz. 

3. Se não vale tudo nem serve tudo, a que se deve esta busca desenfreada por ‘qualquer coisa’ desde que me faça sentir bem ou aparentemente bem, que me cure rapidamente ou até traga o dinheiro de que tanto necessito e, quiçá, o amor da minha vida? De um lado os espaços cristãos de culto, as nossas igrejas, têm cada vez mais bancos disponíveis para acolher os ausentes. Por outro, enquanto este esvaziamento acontece à vista desarmada e a um ritmo alucinante, enchem-se os ginásios de Yoga, os centros de terapias alternativas como o Reiki, a prática de espiritualidades esotéricas de culto aos elementos da natureza, a procura e consulta de cartomantes, bruxos e curandeiros. O que revelam todos estes comportamentos? 

4. Há quem, perante estas evidências, afirme que as pessoas já se libertaram da religião para abraçar a espiritualidade, essa dimensão ampla que define e alarga os horizontes do humano, na qual não existem regras ou mandamentos a cumprir. Claro está que tal formulação enferma pelo viés com que se apresenta, pois uma religião que não atinja o âmago da pessoa humana, a sua espiritualidade, não chega a ser verdadeiramente religião. Religião e espiritualidade são, nesta óptica, realidades naturalmente constitutivas e coincidentes com a natureza do Homem. Uma sem a outra carecerá sempre de fundamento e o resultado é, em certo sentido, uma fractura estrutural e estruturante da pessoa. 

5. Não temos dúvidas dos sinais deste tempo, nem da necessidade de os escutar, interpretar e, consequentemente, agir. Contudo, na Ágora dos nossos dias, diante de uma multidão em busca de razões para viver, não deixa de ser sintomático que estejamos distraídos em doutas conversas ou até com acções de alto e indiscutível relevo social. 

6. Impõe-se um regresso criativo da espiritualidade cristã cuja base assenta na oração realizada de múltiplas formas e com recurso a dinâmicas várias, realçando o modo solenemente simples de celebrar os Sacramentos em comunidade, por exemplo. Se a isto acrescentarmos uma boa dose de redefinição das prioridades, se dermos tempo ao tempo e espaço ao verdadeiramente importante, é de crer que a busca pelas ‘alternativas espirituais’ à proposta cristã possa, pelo menos, decrescer. 

No tempo da pressa existencial, como é o nosso, um dos grandes desafios consiste precisamente em não ceder à tentação do fast-food espiritual que, como todo o ‘bom’ fast-food, pode até saber bem, mas faz muito mal.

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