Prof. Manuel Braga da Cruz: “Não nos fechámos em casa. Partimos com a ‘saudade’”

Antigo Reitor da Universidade Católica Portuguesa, Manuel Braga da Cruz é uma das vozes mais lúcidas na análise do país, invocando o seu passado recente. No dia 8 deste mês recebeu o Prémio Árvore da Vida – Padre Manuel Antunes, como reconhecimento do seu trabalho. Ao Notícias de Viana assume a surpresa da atribuição, e revela por que razão o ser das coisas se encontra no seu interior.

João Basto
20 Mar. 2023 5 mins
“Não nos fechámos em casa. Partimos com a ‘saudade’”

Notícias de Viana (NdV): O que significa receber o Prémio Árvore da Vida – Padre Manuel Antunes?

Prof. Manuel Braga da Cruz (MBC): Foi uma agradável surpresa. O mais importante significado é o reconhecimento das Ciências Sociais como ciências da cultura, o reconhecimento da dimensão cultural de toda a realidade social. A cultura é o cimento coesivo de todas as realidades sociais.

(NdV): No ato de entrega do prémio Árvore da Vida, falou da “descoberta da verdade na realidade social e nas suas interpretações, contra o empirismo facial, contra o relativismo subjetivista, contra as leituras ideológicas deturpadoras”. Como é possível descobrir a verdade do cristianismo sem cair nestas armadilhas?

(MBC): O cientista social deve recusar as leituras à primeira vista, superficiais, as aparências, porque “por dentro das coisas é que as coisas são”, como dizia o nosso poeta Carlos Queirós. O empirismo julgava ser possível tratar as realidades sociais como coisas, elidindo os valores. Não é! Os valores presidem a toda a investigação e ação social. O cristianismo traduz-se também numa mundividência e numa axiologia, que presidem à investigação e à ação social dos que nele se inspiram. A verdade liberta. Para além de tudo o que ofusca, é preciso ver por dentro, penetrar no real social, para além das distorcidas leituras que sobre ele existem. Assim também com o cristianismo, que deve ser entendido para além das suas manifestações aparentes.

(NdV): O que marca e define o “catolicismo português”?

(MBC): O catolicismo português é um catolicismo mariano, graças à atuação dos monges brancos de S. Bernardo na fundação de Portugal. Todo o catolicismo o é, mas a espiritualidade cristã dominante e difusa, é muito devedora do culto mariano. Portugal está polvilhado de capelas a Nossa Senhora por todo o lado.

Para além disso, os portugueses são, como dizia Jorge Dias, contemplativos na ação, mais ascetas do que místicos, mais líricos do que épicos. Daí que tenhamos levado o cristianismo a todo o mundo, difundindo ativamente o Evangelho. Não nos fechámos em casa. Partimos com a “saudade”.

(NdV): Que compromissos são hoje exigidos aos católicos na relação com a sociedade?

(MBC): Os cristãos, e em especial os católicos, são hoje chamados a testemunhar os valores do Evangelho nas suas vidas, de forma coerente. Os nossos tempos são tempos de reconversão. Precisamos de passar de um catolicismo ritualista para um cristianismo vital, vivido e testemunhado, de modo que os católicos testemunhem na sua vida, nos seus comportamentos privados e públicos, a fé, a esperança e a caridade evangélicas. Só assim acreditarão em nós, no que dizemos e anunciamos.

Somos chamados a traduzir o Evangelho na vida pública e não apenas em nossas casas, de maneira que os valores do Evangelho impregnem as estruturas sociais, as instituições e as pessoas com quem lidamos.

Infelizmente, estamos a assistir a um afastamento dos católicos da vida pública e da vida pública do Evangelho.

(Ndv): O século XX português, aliás como em toda a Europa, foi extremamente conturbado com duas grandes revoluções. Ainda assim, insistimos a olhar para Portugal como a “choldra” queirosiana. Seremos, unicamente, um país de boas intenções?

(MBC): Somos um país e um povo que, historicamente, fez grandes realizações ao longo dos tempos. Sendo pequeno, Portugal levou a cruz de Cristo às mais longínquas paragens do mundo. Somos reconhecidos pelo mundo como um país antigo, empreendedor, capaz de vencer obstáculos e tormentas, para dobrar o cabo da esperança.

Temos que acreditar em nós, que somos capazes de voltar a ser marcantes em termos internacionais, se soubermos romper com tudo o que nos atrasa. Temos que derrotar o nosso proverbial pessimismo. E a verdade é que há portugueses pelo mundo na vanguarda das grandes realizações.

(NdV): Na introdução de um livro recente, Miguel Monjardino, refere que a digitalização trouxe consigo um efeito paradoxal, porque “à medida que temos cada vez mais informação, o nosso conhecimento diminui”. Estaremos condenados a ficar náufragos do presente, do momento e do imediato?

(MBC): A sociedade da informação, com toda a revolução telemática, alterou as relações sociais, que deixaram de ser relações quentes, “face to face”, para passarem a ser relações mediadas, mediatizadas, frias. O individualismo avassalador da globalização afastounos da sabedoria, que está para além do excesso de informação. Somos chamados a realizar “comunidade”, para que as pessoas se encontrem consigo e com Deus.

(NdV): No entanto, dá a sensação que vivemos, como escreveu Anselm Jappe, numa sociedade autofágica. Como podemos sair deste colete-de-forças?

(MBC): Somos chamados, nas sociedades em que vivemos, a ser protagonistas da história, e não meros sujeitos passivos, espectadores do que passa, sem intervir. E somos chamados a fazê-lo, enquanto “comunidade”. Temos um papel importante a desempenhar enquanto cristãos, num mundo desumanizado, atravessado de injustiças, necessitado de justiça e de paz.

Precisamos de passar de uma passividade amorfa, a um intervencionismo organizado. Muitos esperam muito do catolicismo em Portugal, da Igreja, e dos católicos. Saibamos estar à altura dessa expectativa.

Fotografia: diocese-braga.pt

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