Irreconhecível entre tantas outras casas, no meio das ruas do centro histórico da cidade de Viana do Castelo, assinalada, unicamente, por uma pequena placa de cor preta, junto à porta de entrada, reside uma pequena comunidade das Irmãs Reparadoras Missionárias da Santa Face, cuja fundadora, Irª. Maria da Conceição Pinto da Rocha, natural de Barroselas (Viana do Castelo), tem o processo de beatificação a decorrer. No mês de novembro, que inicia com a invocação à santidade, o Notícias de Viana esteve à conversa com a Irª. Teresa de Miranda e com a Irª. Lurdes Araújo, sobre a comunidade e a figura que a inspira
Notícias de Viana (NdV):Como surgiram e qual missão específica das Irmãs Reparadoras Missionárias de Santa Face?
Irª. Teresa (IT): A nossa fundadora escreveu dois memoriais, um ao Papa Pio XI e outro ao Papa Pio XII, e quem os entregou foi o Patriarca das Índias daquele tempo, D. Teodósio, visto que ela esteve muitos anos com dúvidas sobre a veracidade da intuição da fundação, e como esse Patriarca era o diretor espiritual da Irª. Maria do Divino Coração, que morava no Porto, ela pediu que ele viesse cá para a ouvir e, em consequência, levar as cartas para o Santo Padre, acabando também ele por confirmar que a fundação era obra de Deus, e que ela devia continuar sem ter dúvidas ou preocupações. Em resposta a estas cartas, o Secretário do Papa falava em “Irmãs reparadoras missionárias da Santa Face” e, embora a Ir. Maria da Conceição só sentisse necessidade de que o instituto tivesse a referência à Santa Face, adaptou o nome que tinha vindo de Roma. Quanto à missão, podemos resumi-la em duas: em primeiro lugar, a oferta com Cristo em mistério pascal, pela continuação do calvário com Jesus e com Maria, junto à cruz; e, em segundo lugar, o apostolado da misericórdia.
E o que é que levou a Irª. Maria da Conceição a ter esta intenção de fundar uma congregação?
(IT): Ela era filha do chefe da estação de Barroselas e como os pais eram piedosos, ela também acabou por receber o dom da piedade. Assim sendo, aos 14 anos, ela já ia frequentemente à igreja levar raminhos ao altar da Senhora de Lourdes e, depois de conhecer a História de uma Alma, de Santa Teresinha, fez uma oferta à Sagrada Família, acabando por, aos 19, fazer o voto do amor misericordioso. Entretanto, ao longo do acompanhamento espiritual que ela foi tendo – como isto se passa a seguir à implantação da República, ela correspondia-se não com padres religiosos, mas com o Pároco de Vila de Punhe – foi recebendo estímulos nesse sentido e, quando regressaram as ordens religiosas masculinas, sobretudo, os Padres do Espírito Santo, ela foi sendo continuamente acompanhada. Com a resposta do Papa Pio XI ficou entusiasmada porque pensava que estaria para perto a fundação. Mas, com o começo do processo de fundação da Diocese, o Arcebispo de Braga tornou-se renitente à obra, argumentando que uma pessoa ignorante, pobre e doente não podia fundar uma Ordem, acabando por rejeitar a ideia. Mais tarde, depois dos anos 40, houve um grande auxílio por parte dos padres jesuítas, em especial do Pe. Ferreira Fontes, mas, infelizmente, ele adoeceu repentinamente e acabou por falecer, o que atrasou, de novo, o processo. Como o Papa tinha entregue o processo ao Cardeal Cerejeira, a fundação só surgiu em 1969, muito embora tenha sido preparada mais intensamente desde 1965, ao início numa casa em Alvalade, e depois no bairro da Estrela, em Lisboa.
(NdV): Quantas comunidades existem no país? Quantas irmãs integram a obra?
(IT): Existem quatro: Lisboa, que foi a primeira, depois Fátima, a seguir esta de Viana, embora tenhamos começado em Darque, no Centro Pastoral, a partir de um pedido do Sr. D. Armindo, e ainda falta a comunidade dos Açores. Quanto a números, ao todo somos dez, mas ainda temos que contar as agregadas que estão espalhadas por todo o mundo, desde os restantes países europeus aos Estados Unidos da América, ou mesmo, ao Brasil. Na verdade, a Ir. Maria da Conceição sempre disse que não surgem muitas vocações e que a multidão seriam as agregadas. Em Viana estamos duas, em Fátima quatro, em Lisboa estão também duas e nos Açores, igualmente duas.
(NdV): Qual é, na verdade, a diferença entre as Irmãs e as agregadas?
(IT): As Irmãs fazem os três votos – obediência, pobreza e castidade – e ainda o quarto voto de oferta com Cristo Vítima, e as agregadas fazem promessas, o que não as coloca sob a responsabilidade do voto. Funcionam quase como uma ordem terceira.
Irª Lurdes (IL): As agregadas são viúvas, casadas e solteiras, vivem do seu trabalho, na sua própria casa, mas todos os meses, inclusivamente neste tempo de pandemia, fazemos uma reunião com todas as agregadas, simpatizantes e quem queira conhecer um bocadinho a nossa espiritualidade. Por outro lado, a Superiora vai-se correspondendo com elas e, todos os anos temos um encontro de família, que este ano seria em Viana do Castelo, e oito dias de exercícios espirituais. Em resumo, elas vivem o nosso carisma nas suas famílias, imbuindo a sua vida nesta espiritualidade de oferta em chave pascal, nas pequenas coisas, porque a nossa vida é feita de pequeninas coisas, dado que toda a morte se transforma em ressurreição.
(NdV): Como organizam a vida comunitária e as atividades pastorais?
(IL): Cada comunidade faz o horário, adaptando-se àquilo que tem pela frente. Já passámos pelas várias comunidades e, por isso, vamos percebendo como se organiza cada uma. Ao nível da Congregação, não temos obras próprias, mas temos é o nosso apostolado, trabalhando com o tempo que é possível. Visitamos cadeias, doentes e fazemos assistência aos moribundos, por exemplo.
(IT): Estes serviços dependem também das qualidades de cada Irmã.
(IL): Ou seja: há uma que tem muito mais vocação para visitar os doentes e estar com os moribundos; outras para estar com crianças, porque, aqui, além de termos o nosso horário comunitário desde a oração pessoal e comunitária, temos outras responsabilidades. Por exemplo, estou responsável pela casa de Darque, onde vou todos os dias – dou catequese – e há uma ou outra coisa que vamos fazendo, a nível paroquial e diocesano.
A comunidade de Fátima tem a Irmã Fernanda que dá catequese, e outra, Irmã Hermínia, que dá muito apoio ao Santuário, desde a comunhão às leituras. Em Lisboa, na casa geral, uma Irmã trabalha no Secretariado da Paróquia e dá catequese. Já a Irmã Júlia, a responsável geral, tem muito que fazer, e tudo isto com a vida comunitária. E, nos Açores, as Irmãs trabalham muito na inserção social. Portanto, cada comunidade prepara e organiza o seu dia, tendo em conta a adoração. Todas as comunidades a têm.
(IT): Temos uma vida contemplativa e vida ativa. Agora, cheguei à idade de ficar pela vida contemplativa. Adoro, porque a nossa vida inclui as duas dimensões. Gosto muito de estar por casa, assim como a nossa fundadora fez quando adoeceu. No entanto, também estive no Açores, trabalhei em cadeias e nos bairros. Uma vida muito linda, de que gostei muito.
(NdV): A Diocese de Viana do Castelo iniciou, em 1983, o processo de beatificação de Maria da Conceição Pinto da Rocha, fundadora das Irmãs Reparadoras Missionárias da Santa Face. Em que ponto está o processo de beatificação?
(IT): O processo foi para Roma. Quem abriu o processo foi o Sr. D. Armindo Lopes Coelho, e quem o encerrou foi o Sr. D. José Augusto Pedreira.
(IL): Quem fazia parte desse processo eram o Pe. Dário (postulador), Pe. José Sousa, Pe. Vilar, Pe. Gaudêncio e acho que agora também faz parte o Pe. Bruno. Recentemente, já com o Sr. D. Anacleto, chegou um documento de Roma que faltava assinar. Falta sempre alguma coisa. Ele não assinou antes das férias e estava previsto fazê-lo na segunda-feira, quando vinha para Viana do Castelo. Mas não assinou… Deus assim o permite, e as coisas vão acontecer quando tiverem que acontecer. Agora, será com o próximo Bispo. Foi este bocadinho que faltava, mas Deus lá o sabe. Para nós, temos a fundadora como nossa santa, mas também a nível da Igreja, porque percebe-se que na cidade há muitos padres que tinham, e têm, um carinho muito grande pela fundadora e pela Congregação. Os planos de Deus hão-de acontecer.
(IT): Mesmo gente de fora que se identifica com ela, contacta-nos por causa da espiritualidade. Aliás, é mais recorrente do que aqui.
(NdV): O que representa este momento para a comunidade?
(IL): Vai ser um passo muito importante para nós e para a Igreja, mas a fundadora já cá está no nosso coração. Nosso Senhor há-de dar a graça de, pelo menos, uma de nós ver o processo concluído e depois, a beatificação, se assim Nosso Senhor o permitir. Será um passo importante quando o nosso novo Bispo chegar. É fundamental.
(NdV): O que destaca da figura da Ir. Maria da Conceição Pinto da Rocha?
(IT): Embora ela ainda seja do meu tempo, não a conheci. Era uma pessoa ousada e perseverante porque, quando sentiu que Deus lhe pedia a obra, não desistiu. Hoje é mais fácil criar uma Congregação do que naquele tempo. Ela escrevia para o Papa e fazê-lo não era brincadeira nenhuma. Nesta ousadia, ela tinha aquilo dentro dela e foi sempre para a frente, e morreu sem fundar a obra. Ela também mexia muito com as discípulas através das cartas. Onde se manifestasse o amor de Deus, ela levava tudo à frente.
(IL): Ela era uma mulher toda para a frente, no sentido em que não parava no tempo, nem nas coisas. Se hoje fosse viva, seria muito mais para a frente e desembaraçada do que qualquer uma de nós. Através dos escritos dela, percebe-se que era uma pessoa de oração e de muita intimidade com Deus. Por outro lado, levava as coisas muito mais além. O Arcebispo de Braga queria que ela fundasse lá a obra, mas ela queria aqui, porque achava que Viana do Castelo devia ser uma Diocese. Ela também trabalhou imenso para que viesse a ser Diocese. Não aconteceu naquela altura, mas ela deixou tudo feito para depois darem continuidade. Ela escreve, escreve e escreve. Em qualquer livro dela, dá-nos conta de tudo aquilo que nos queria deixar. Qualquer fundador é assim. Se Deus lhe dá o desejo de criar uma congregação, o fundador não fica parado no tempo.
Em outros sítios, e não gosto nada, dizem que ela era pobre, sem cultura e sem dinheiro. Naquela altura ia ter o quê? Ela tinha apenas a 4ª classe.
(IT): A nossa fundadora foi também uma mística muito equilibrada e discreta.
(NdV): Num ano pastoral dedicado à Pastoral Juvenil, que contributo pode dar o exemplo da Ir. Maria da Conceição? Ela própria que admitia, por exemplo, que, quando era mais nova, “não suportava as orações durante muito tempo (…) e desligava do assunto”.
(IL): Isso acontecia quando ia para a igreja rezar. Ela não aguentava e não lhe dizia nada. Sentia-se cansada e desligava-se, mas não saía de lá. E é uma coisa que também acontece comigo. Estou a rezar, mas não estou ali. Fisicamente, estou.
Relativamente à Pastoral Juvenil, ela iria pôr-nos a fazer as coisas. Não ia desanimar, porque é natural que uma criança se canse. Hoje nem sequer se concentram, mas, naquela altura, as crianças trabalhavam muito, e quando quisessem rezar, cansavam-se e desligavam.
(IT): Antigamente, a primeira comunhão fazia-se muito mais tarde. A mãe preparou-a e ela confidenciou-lhe que se sentia cansada, mas depois, já jovem, fez várias coisas, nomeadamente, a festa da Imaculada Conceição. Juntou um grupo de jovens e fez com que a festa se mantivesse até aos dias de hoje.
Ela também começou com a catequese em Barroselas e depois outras pessoas assumiram, e é também uma das coisas que se mantém até hoje.
A fase do cansaço foi muito curta porque, às escondidas do pai, saia descalça com os socos na mão para ir à Missa. Já com 14 anos, levava muito ramos a Nossa Senhora e escondia-os.
(NdV): A Ir. Maria da Conceição assumiu-se como “amiga da solidão, apaixonada pelo deserto”. O que é que isto pode significar para a sociedade, num momento em que se fala de um “retorno da procura espiritual” em plena era do ruído?
(IL): Ela dizia muito que gostava de ir por esse mundo nos desertos sem pão, sem Deus e sem amor. Claro que não era bem sem isso. Onde não houvesse, ela levava porque se punha no silêncio e na solidão. Hoje falta um bocado isso. Não é aquela solidão que hoje existe cada vez mais, mas no sentido de estar nesta união com Deus.
Ela também dizia que Deus Se revela na tristeza e na solidão. Sabemos que é aí que Deus nos fala, e ela dizia que é no rebuliço e na azáfama que o nosso coração está mais disponível para ouvir Deus, que nos quer falar. Hoje o que há é reboliço, é o “salve-se quem puder” e o barulho. Ou seja, estamos tão concentrados no “eu”, que nos esquecemos de ouvir o outro. É isto que faz falta nos dias de hoje. Vejo isso pelo meu grupo de catequese. Consigo apenas dois minutos de silêncio porque, mais do que isso, é muito difícil. E isso faz-nos falta, mas acredito que esses valores principais hão-de chegar-nos outra vez.
(IT): Mesmo na solidão, ela corria o mundo, tendo presente todas as dificuldades, o desprezo e indiferença por Deus.
(NdV): Qual o motivo que leva a falarem dela como uma semente escondida?
(IT): Porque ela viveu sempre escondida, tirando em Barroselas, quando foi catequista. Ela era uma pessoa muito ativa, mas infelizmente teve tuberculose óssea e, mais tarde, cancro. Ela ficou limitada na cama e, dali, era uma fonte e semente que estava sempre a brotar vida em todas as dimensões.
(IL): Ela era uma pessoa muito, muito, no ativo, mas colocava mais os outros no ativo. Ela não era daquelas que apareciam e davam nas vistas; para isso estavam outros. Era mesmo uma semente escondida. É claro que, quando adoeceu, as coisas eram diferentes. A nossa Congregação é também assim. Nós não dizemos “temos aquelas obras”. Vamos fazendo aquilo que está ao nosso alcance. Não devemos ser o ato das coisas, mas que Deus seja o ato em nós. Quando escolheram o título do livro, foram felizes, porque ela era, de facto, uma semente escondida.
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