Maria Clotilde Amaral é, desde 2008, diretora do Arquivo Distrital de Viana do Castelo (ADVCT). Chegou à capital do Alto Minho pelas mãos da então diretora, Maria Olinda Alves Pereira, para a área dos arquivos para o projeto do Inventário do Património Cultural Móvel.
O balanço dos últimos quase 15 anos é “positivo”, embora o Arquivo Distrital tenha passado por fases “muito distintas”. “Até 2010, a estratégia foi maioritariamente voltada para o exterior, designadamente para a consolidação da rede dos Arquivos Municipais do Alto Minho, através da manutenção de reuniões periódicas do Grupo de Trabalho, também abertas a alguns municípios do distrito de Braga e ao Instituto Politécnico de Viana do Castelo”, explicou.
Embora as reuniões tenham sido muito participativas, a responsável foi obrigada a direcionar-se para questões internas, “consequência do acréscimo de trabalho e da falta de recursos humanos para o desenvolver”. “Foram anos extremamente duros, em que se tentou ‘sobreviver’ na adversidade, procurando não afetar a qualidade do serviço prestado e a relação com os utilizadores. Aliás, foi em consequência desta falta de recursos, sobretudo humanos (chegámos a estar apenas três trabalhadores no ativo para um distrito inteiro, durante mais de um ano), que se optou por recorrer a uma candidatura no âmbito de um projeto cofinanciado – o GEOARPAD, enquadrado no programa operativo EP – Inter-regiões V A Espanha Portugal”, contou, frisando que “o objetivo era que se pudesse desenvolver outras tarefas que não apenas assegurar o regular funcionamento dos serviços”.
A partir de dezembro de 2016, o mapa de pessoal do ADVCT começou a ser gradualmente reforçado, contando atualmente com nove trabalhadores, todos eles “muito dinâmicos, interessados e disponíveis” para enfrentar desafios. “No ano de 2020, o edifício do ADVCT foi alvo de obras de conservação e reabilitação, proporcionando uma melhoria considerável no bem-estar de quem trabalha e frequenta os serviços”, salientou, acrescentando: “O ADVCT está no início de uma terceira fase, em que se procurará uma maior abertura à comunidade, sem prejuízo do trabalho interno. Iremos também aproveitar as verbas do PRR – Plano de Recuperação e Resiliência que foram atribuídas a este Serviço, e que redundarão na disponibilização de mais 1.000.000 de imagens até 2025.”
Este desafio irá, segundo Maria Clotilde Amaral, “exigir muito trabalho”. “Não obstante os períodos de crise vividos, o ADVCT disponibilizou, durante estes anos, mais de 2.000.000 de imagens online, e conta atualmente com 111.738 registos descritivos consultáveis no DigitArq (base de dados digital do Arquivo Nacional Torre do Tombo)”, referiu, especificando: “Estes números só foram possíveis por se ter embarcado no projeto de digitalização de livros paroquiais, do registo civil, de passaportes, de testamentos e de processos orfanológicos ao abrigo de um protocolo estabelecido entre a DGLAB (Direção-Geral do Livro, dos Arquivos e das Bibliotecas) e a Family Search (organização internacional de pesquisa genealógica).”
Notícias de Viana (NdV): O Arquivo Distrital de Viana do Castelo tem à sua responsabilidade um vasto e notável património arquivístico. Quais os fundos mais relevantes conservados em arquivo e quais os mais consultados pelos utentes?
Maria Clotilde Amaral (MCA): O ADVCT tem à sua guarda quase quatro quilómetros de documentação, estando identificados mais de 600 fundos [conjunto de documentos produzido por uma entidade pública ou privada no exercício da sua atividade] e coleções. Preferia não destacar um ou outro fundo, por considerar que todos são importantes para a vida e para a memória dos cidadãos, dependendo obviamente das necessidades de informação de cada um. É muito gratificante quando vemos que os documentos podem ajudar alguém a resolver os seus problemas, ou a suprir as necessidades geradas pela investigação, ou simplesmente a satisfação da curiosidade de quem questiona. Neste sentido, aquilo que poderia eventualmente salientar são os fundos que diariamente colmatam estas necessidades de informação, ou seja, os arquivos paroquiais e do registo civil, os notariais e os judiciais. Pena é que nem todos estejam íntegros, por nunca terem dado entrada no ADVCT e que, muitas vezes por causa dessas lacunas, os cidadãos fiquem lesados nos seus direitos! Há, ainda, a referir dois arquivos bastante íntegros – os das Misericórdias de Caminha e de Viana do Castelo – também muito solicitados, e que têm servido de base a várias e importantes teses e monografias no âmbito de diferentes áreas de investigação.
(NdV): Atualmente, toda a documentação sob tutela e custódia do Arquivo Distrital está classificada, possui instrumentos de descrição e está disponível para consulta?
(MCA): Toda a documentação que se encontra à guarda do Arquivo Distrital está classificada como património arquivístico nacional.
No que respeita à sua organização e aos instrumentos de descrição documental disponíveis, existem para toda a documentação, sendo que uns são mais aprofundados do que outros. Em arquivo, a descrição faz-se por níveis e, quanto mais se desce o nível, mais pormenorizada é a descrição. Só alguns fundos têm descrição muito pormenorizada, justificada pelas necessidades de consulta dos nossos utilizadores.
Existem ainda instrumentos de descrição não disponíveis para consulta, por se reportarem a documentação confidencial, que só será revelada a quem mostrar que é credenciado para aceder à informação nela contida.
Em suma, a maioria dos fundos está descrita ao nível do catálogo, na sua maior parte informatizada e disponível na web. Estão ainda disponíveis alguns catálogos em papel, consultáveis in loco. Os utilizadores podem, igualmente, consultar índices informatizados da maioria dos processos judiciais. Também a documentação notarial possui índices cronológicos, feitos na origem e em suporte papel, que abarcam a maior parte das escrituras do século XX. Alguns destes índices estão a ser informatizados neste momento, bem como registos paroquiais de batismos, registo civil de nascimentos e registos de passaportes. Embora se trate de um trabalho muito moroso, justifica-se pela utilidade, já comprovada, que tem para os nossos clientes.
(NdV): Quais as últimas incorporações com significativa relevância?
(MCA): Infelizmente não tem sido possível apostar muito nas incorporações de documentos, pois, atualmente, debatemo-nos com o problema da falta de espaço. Tem-se aceitado pontualmente alguns documentos de diferentes proveniências, mas que ocupam poucos metros lineares de estante. A última incorporação significativa, realizada no início deste ano, foi a da Conservatória do Registo Civil de Caminha, tendo dado entrada livros com registos de nascimento, de casamento e de óbito, entre outros, com datas compreendidas entre os anos de 1911 e 1922.
(NdV): Quais as formas de acesso e consulta dos documentos disponibilizados pelo Arquivo Distrital?
(MCA): O acesso pode ser efetuado presencialmente ou online, sendo que, por razões de conservação, só serão consultados fisicamente, na sala de leitura, os documentos que ainda não se encontrem digitalizados e disponíveis através do site do Arquivo Distrital e estejam em bom estado de conservação.
Presentemente, pode aceder-se a uma parte da documentação custodiada pelo Arquivo Distrital a partir de casa, uma vez que já estão mais de 2 milhões de imagens disponíveis na web através do nosso portal. Estas imagens reportam-se a 16.400 documentos, sobretudo paroquiais e do registo civil, notariais e judiciais. Essencialmente aqueles que vão mais ao encontro das necessidades dos nossos utilizadores.
Ainda em termos de acesso, refira-se que, no ano corrente, se deu início ao restauro de muitos documentos, nomeadamente de livros paroquiais e notariais que se encontravam em péssimo estado de conservação e, consequentemente inacessíveis. Deste conjunto, apenas podiam ser consultados através de microfilme alguns livros paroquiais, mas a qualidade destas imagens era bastante má e não garantia a integridade da informação. No fim das operações de restauro, os livros são digitalizados, ficando acessíveis online para maior comodidade dos utilizadores e salvaguarda dos originais.
(NdV): Qual é o perfil do utente-tipo que frequenta o Arquivo Distrital?
(MCA): O perfil dos utilizadores é extremamente diversificado, variando entre os investigadores com habilitações literárias bastante elevadas e o simples cidadão, que procura o Arquivo para fins legais ou por simples curiosidade. De acordo com inquéritos lançados no passado, a maioria são genealogistas que procuram, essencialmente, informação contida nos livros de registo paroquial e do registo civil. Porém, também há um grande grupo de profissionais, sobretudo advogados e solicitadores, que acedem à informação com o objetivo de resolver problemas dos seus clientes.
Pode afirmar-se que a maioria dos utilizadores é de nacionalidade portuguesa, mas, nos últimos anos, tem vindo a aumentar o grupo de utilizadores que reside no estrangeiro e que procura obter nacionalidade portuguesa. Estes socorrem-se, principalmente, da documentação paroquial e do registo civil, que tem sido essencial para fazerem valer os seus direitos.
(NdV): Que tipo de articulação tem o Arquivo com os seus homólogos do Distrito?
(MCA): Excetuando o Arquivo Municipal de Viana do Castelo (que já funcionava anteriormente à criação do Distrital), o Arquivo Distrital contribuiu para a criação dos arquivos municipais do distrito, colaborando na seleção de arquivistas, na organização e descrição da documentação e na orientação na conceção dos edifícios entretanto construídos. Trata-se de um grande projeto que a minha antecessora, a Dra. Maria Olinda Alves Pereira, levou a cabo com muito entusiasmo e dedicação. Note-se que o distrito de Viana do Castelo foi o primeiro, a nível nacional, a dispor de um Arquivo Municipal em cada um dos seus dez concelhos.
Ainda a este propósito, em 11 de dezembro de 2003, foi criado um grupo de trabalho intitulado Grupo de Trabalho dos Arquivistas do Alto Minho (GTAAM) que associava os arquivistas então existentes (além do Arquivo Distrital, integravam o grupo de arquivistas dos Municípios de Caminha, Melgaço, Monção, Paredes de Coura, Ponte de Lima, Valença e Vila Nova de Cerveira, e ainda de Guimarães e de Vila Verde, do distrito de Braga). Tinha por objetivo “aproximar metodologias de trabalho e desfazer dúvidas que surgissem no decurso da prática arquivística desenvolvida nos diferentes arquivos” (ata nº 1, de 11/12/2003).
(NdV): O Arquivo Distrital de Viana do Castelo é um dos parceiros do «Projeto GEOARPAD – a memória transfronteiriça nos Arquivos do Alto Minho», com um orçamento total de 3.637.964,18€, que possibilitou a digitalização de 223 mil documentos históricos. Em que consistiu o trabalho de parceria? Toda a documentação digitalizada está disponível online?
(MCA): Foi um projeto de parceria muito interessante, não apenas com os nossos vizinhos galegos, mas também com a Comunidade Intermunicipal do Alto Minho e com todos os Arquivos Municipais do distrito. Possibilitou a digitalização e disponibilização online de milhares de documentos, mas também incluiu outras atividades, como a elaboração de um guia para projetos de digitalização, a realização de dois webinars, a publicação de um vídeo e de um e-book [livro eletrónico]. Infelizmente decorreu na altura em que a Covid-19 surgiu, o que impediu a realização de atividades presenciais de divulgação do projeto. Mas, em termos gerais, no final, todos saímos muito mais enriquecidos com a partilha de conhecimentos, de recursos e de métodos de trabalho.
Relativamente aos documentos selecionados pelo Arquivo Distrital para este projeto, optou-se pela descrição de 14.102 livros de notas de diferentes ofícios de tabelionado pertencentes aos 10 concelhos que compõem o distrito de Viana do Castelo. Descreveram-se os livros, até 1900, de todos os ofícios localizados nas vilas sede de concelho. Em simultâneo, tinha-se por objetivo capturar e disponibilizar online 227.500 imagens respeitantes a alguns desses livros, tendo-se conseguido um total de 234.653 imagens, podendo ser consultadas online imagens de 872 documentos. O objetivo era garantir a salvaguarda dos suportes originais e a difusão em massa da informação neles contida. Com a disponibilização online destas imagens, afirmou-se o papel dos arquivos enquanto recurso fundamental da atividade administrativa, proporcionando, assim, à comunidade nacional e internacional, uma fonte de informação incontornável para o estudo das mentalidades e dos comportamentos sociais. Na verdade, as escrituras são de uma grande riqueza informacional ao nível da história económica (compras e vendas, dinheiro a juro), social (testamentos, forma de enterrar, missas, bens deixados), geografia (nomes de lugares, culturas das terras, limites de propriedades), genealogia (testamentos, escrituras de dote e casamento). Desta forma, a memória coletiva e dos direitos dos cidadãos de ambos os países, que se encontravam registados num suporte único – o papel, um suporte vulnerável, com risco de perenidade, devido à acidificação provocada tanto pela sua própria constituição como pela ação dos materiais utilizados na escrita, ficou assim salvaguardada e foi massivamente divulgada.
(NdV): Que tipo de colaboração tem o Arquivo Distrital com outras instituições do Distrito?
(MCA): O Arquivo Distrital mantém bom relacionamento com outras instituições do distrito, designadamente com aquelas cuja documentação se encontra confiada à sua guarda. Muitas vezes surgem dúvidas na atuação do dia a dia, que rapidamente são esclarecidas de parte a parte.
Refira-se que também foi confiada à sua guarda, a título de depósito, a documentação das Santas Casas da Misericórdia de Caminha e de Viana do Castelo, e que têm servido de base para numerosos trabalhos académicos e de investigação. Mas, a colaboração não se limita em dar acesso à informação destes espólios. Para além de mostras documentais, ainda muito recentemente a Santa Casa da Misericórdia de Viana do Castelo publicou um e-book com o fac-simile [reprodução exata da edição original de um documento antigo] de um dos documentos mais consultados.
(NdV): Existe alguma forma de mecenato?
(MCA): Para já, não se tem recorrido ao mecenato. Tem-se estado atento aos financiamentos públicos para colmatar algumas faltas de recursos. Quem sabe, no fim do PRR, se vá enveredar por uma solução que envolva o mecenato!
(NdV): Que iniciativas promove o Arquivo Distrital para além da tutela do património arquivístico? Que ações desenvolve para devolver o valor da memória à sociedade?
(MCA): São várias as iniciativas que o Arquivo Distrital vai promovendo para difundir a informação que gere. As que, provavelmente, atingirão um público mais vasto, serão as que dizem respeito à divulgação de documentos nas redes sociais – Facebook e Instagram – e também através do site do Arquivo Distrital – https://advct.dglab.gov.pt/. Dá-se notícia das atividades desenvolvidas, publicam-se documentos alusivos a temas de interesse para o distrito, entre outros.
A divulgação passa também pela organização de pequenas mostras documentais. Ultimamente, temos optado por torná-las virtuais, no final da exposição física, por forma a chegarem a um maior número de pessoas.
Há igualmente a referir o acompanhamento de visitas de estudo dirigidas a diferentes públicos e distintos temas. Já desenvolvemos atividades com alunos do pré-escolar até aos da Universidade Sénior. Há lugar para todos, e os guiões adaptam-se às idades e interesses de cada um.
(NdV): Que projetos do Arquivo Distrital destaca?
(MCA): Em primeiro lugar, destacaria a criação da rede de Arquivos do Alto Minho que, como já referido, logrou ser o primeiro distrito a ter um arquivo municipal por concelho. Foi um projeto fundamental para a salvaguarda do património do distrito, mas também para a defesa dos direitos dos cidadãos.
Outro projeto de grande impacte, foi levado a cabo ao abrigo de um protocolo estabelecido entre a atual DGLAB e a Family Search. Teve por objetivo microfilmar (numa primeira fase) e digitalizar os livros paroquiais e do registo civil que se encontram à guarda do Arquivo Distrital, bem como outros documentos de interesse para a genealogia, como registos de passaportes e de testamentos, provenientes da extinta Administração do Concelho de Viana do Castelo. Foram capturados milhares de imagens que estão a ser disponibilizadas online, após um rigoroso controlo de qualidade.
Depois, destacaria o projeto GEOARPAD já referido, tendo em conta que possibilitou desenvolver atividades que, com os recursos habituais, não seria possível concretizar a breve trecho. Exigiu muito trabalho (na altura a equipa era bem mais pequena do que é hoje), muita criatividade para ultrapassar obstáculos (a Covid-19 assim o exigiu), mas foi possível atingir, e mesmo superar, os objetivos inicialmente propostos, contribuindo para a divulgação do património cultural da Euro-Região Galiza-Norte de Portugal.
(NdV): Quais os próximos grandes desafios do Arquivo Distrital?
(MCA): O próximo grande desafio do Arquivo Distrital vai ser a execução do que lhe está reservado através do Plano de Recuperação e Resiliência. Prevê-se a digitalização e a disponibilização online de 1.006.000 imagens. Foi novamente selecionada, para o efeito, a documentação dos antigos tabeliães (atuais notários) até 1900. No fundo, pretende-se concluir os trabalhos iniciados com o projeto GEOARPAD. Até 2025, a equipa do ADVCT vai estar dedicada quase em exclusividade às tarefas que conduzam a execução do PRR a bom porto. Nem sempre as entidades públicas conseguem financiamentos desta dimensão, e é fundamental aproveitar os recursos que nos são agora oferecidos. Obviamente que o atendimento nunca deixará de ser prioridade do Arquivo Distrital, uma vez que é a razão de ser da sua existência. Não interessa salvaguardar a documentação, se ela não puder ser útil a quem dela necessita. Daí ter-se escolhido, como visão, “A informação certa, no tempo certo”.
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