Khalid Jamal: “O diálogo inter-religioso deve ser mais do que uma miragem e algo cor de rosa”

Dois dias após o início do Ramadão, Khalid Jamal, membro da comunidade islâmica, dá a conhecer os fundamentos do Islão, do lugar de Jesus no universo muçulmano e das possibilidades em aberto no diálogo inter-religioso.

Micaela Barbosa
15 Abr. 2021 9 mins
Khalid Jamal: “O diálogo inter-religioso deve ser mais do que uma miragem e algo cor de rosa”

Khalid Jamal nasceu em Portugal, filho de famílias de origem indiana e árabe. O seu percurso académico fez-se no Colégio Valsassina, na Universidade Católica Portuguesa e na Harvard Business School. No plano institucional, destacam-se a presença na equipa da Missão Permanente de Portugal junto das Nações Unidas, que coadjuvou na então candidatura do Eng. Guterres a Secretário-Geral da organização, a direção da Comunidade Islâmica, do Instituto Luso-Árabe para a Cooperação e do recém-criado Observatório do Mundo Islâmico.

É ainda Presidente do Conselho Fiscal da Real Associação de Bombeiros Voluntários de Lisboa, do Portugal India Business Hub e do Rotary Club. É membro do Grémio Literário, da Sociedade de Geografia e da Sociedade Histórica da Independência de Portugal, e Cavaleiro da Ordem “Pro Scientia et Innovatio”. Participa semanalmente no programa de rádio “E Deus Criou o Mundo”, na Antena 1.

No seguimento da audiência com o Papa Francisco, integra a Comissão “Jornalismo e tradições religiosas” – um grupo de trabalho que nasce em Roma, coordenado pela Faculdade de Comunicação da PUSC – Pontificia Università della Santa Croce, e com o Centro de Estudos do Médio Oriente e a Associação ISCOM (Instituto Superior de Comunicação), com o propósito de promover a excelência na comunicação religiosa.

Foi convidado de honra do governo norte americano, no âmbito de um programa intitulado IVLP – International Visitors Leadership Program, cujo tema é o Interfaith Meeting Dialogue (Encontro sobre o Diálogo Inter-religioso) – programa este que contou com a participação de Jorge Sampaio e Francisco Pinto Balsemão (1965), Mário Soares (1976) Aníbal Cavaco Silva e António Guterres (1978), nas suas primeiríssimas edições.

Candidato a Deputado à Assembleia da República, recentemente tornou-se Embaixador da Campanha Reset, cofinanciada pela União Europeia, cujo principal propósito é desconstruir a narrativa que liga o Islão ao terrorismo.

Iniciou-se há dois dias o Ramadão. O que significa esse momento? Como é vivido?

O Ramadão é, para os muçulmanos, a época mais alegre de todo o ano. Momento de oração, reflexão e de grande júbilo espiritual. É, sem duvida, apesar de cansativo fisicamente, o nosso mês preferido! Diria que é o nosso “Natal”. E como tal, vivemo-lo em família e com muitas idas à mesquita.

Como poderia sintetizar-se a proposta religiosa do islão? Quais são os seus eixos de força e as suas intenções sobre o mundo e a humanidade?

A proposta religiosa que o Islão oferece é, à semelhança de todas as religiões e especialmente as de matriz abraâmica e monoteísta, a de conhecer Deus. Um Deus bom, compassivo e que se dá a conhecer a todos os que se aproximam dEle e cuja misericórdia não é negada a ninguém, mesmo àqueles que nEle não acreditam!Os seus eixos de força é acreditar na bondade suprema da natureza humana, à semelhança dEle, que é motor de mudança e capaz de transformar sociedades.A intenção de um muçulmano deve ser, acima de tudo, desejar para o próximo aquilo que deseja para si.

Como dão os muçulmanos corpo à sua fé?

A fé, sendo algo individual e portanto íntimo, é voluntarista, isto é, não pode ser imposta à força e nem objeto de coação. Significa isto que os muçulmanos dão corpo à sua fé da forma mais espontânea e genuína que conseguem, que é submeterem-se às orientações do seu Criador por sua própria e única vontade. Haverá algo melhor do que fazermos aquilo que queremos e sermos felizes com tal?

Que lugar têm Jesus e Maria no Islão?

Jesus e Maria têm um lugar muito especial no Islão. Desde logo, Maria é a única mulher a ser mencionada pelo nome próprio no Alcorão, nosso livro sagrado, e tendo um capítulo inteiro dedicado a si e a que dá nome (ao todo, é mencionada 39 vezes) – o mesmo não acontece com a mãe de Muhammad (Maomé), por exemplo.E Jesus (que a paz e a bênção de Deus estejam com ele) é considerado um dos grandes profetas que Deus enviou à terra e aos humanos para os orientar na “senda reta”, e o seu nascimento milagroso da Virgem Maria, também faz parte das crenças dos muçulmanos, assim como todos os milagres narrados nos Evangelhos, de tal modo que alguns até se atrevem a dizer que o Alcorão, no seu capítulo número dezanove, de nome Máriam (Maria, em árabe), é uma cópia da Bíblia, pasme-se!A crença de um muçulmano é incompleta sem Jesus.

Frequentemente, escuta-se nas notícias a distinção entre sunitas e xiitas. O que significa ao certo?

A diferença, que muitos teimam em dramatizar é, de forma simplista, uma diferença de posição em relação à sucessão do profeta Muhammad. Nós sunitas, acreditamos que esta terá sido feita de forma natural, pelo companheiro mais próximo do profeta em termos de conduta e reconhecido pelos seus pares; os xiitas creem que tal deveria ter sido feito pelo companheiro mais próximo em termos de relação consanguínea.Isto não quer dizer que nós sejamos democratas e os nossos irmãos xiitas não! E também não que Ali não seja especial.

Como olha para a aproximação do Papa Francisco com a comunidade islâmica, quer com o encontro de Abu-Dhabi, quer com a viagem ao Iraque?

Olho com grande esperança e com uma enorme alegria, e até vontade de fazer parte desta mudança. Tive o enorme privilégio de, com o meu amigo e colega de programa católico Pedro Gil, estar em Abu Dhabi e já tínhamos noção de que se estariam a reescrever as relações entre católicos e muçulmanos – confesso que ainda não tinha a real noção do impacto que tal visita iria ter. Nestes tempos conturbados precisamos de estar ainda mais unidos e vencendo um inimigo comum – a pandemia – e a maldade que, por vezes, nos invade o coração.

Quais crê que são os passos ainda a dar num caminho de diálogo inter-religioso?

Muito há ainda a ser feito; ainda assim (e quem me conhece, sabe) sou um otimista. Acho que é defeito dos crentes, que se esperançam e ancoram em Deus (risos).Da minha experiência, acho que temos de quebrar a síndrome do “discurso duplo” – isto é, termos dois discursos: um no plano das relações internas e com irmãos da mesma fé, e outro para fora: enquanto não tivermos a coragem de dizer e acreditar piamente que um irmão católico é igual a um muçulmano, estamos longe do caminho virtuoso.Dito isto, o diálogo inter-religioso deve ser mais do que uma miragem e algo cor de rosa; deve ser a nossa capacidade de, cientes das nossas diferenças – algumas delas insanáveis –, sermos capazes de trilhar um caminho comum, conscientes de que o que nos une é bem maior do que o que nos separa.

Como podemos olhar para o islão para além do fundamentalismo e do terrorismo?

Acho que seria interessante olhar para o exemplo da vida do profeta Muhammad, (que a paz e a bênção de Deus estejam com ele) que, à semelhança de Jesus, brindou todos com o seu enorme amor e ensinou, através da sua conduta, a criar laços fraternos e de união e paz, e jamais de guerra.

Quais são as principais heranças árabes na nossa cultura que nos passam despercebidas?

A herança árabe estende-se a vários níveis da nossa vivência, tendo tido enorme influência na nossa língua, ciência, designadamente astronomia, matemática e até na gastronomia!O nome “Burtugal” em árabe significa laranja, sabia? E, tal creem alguns, foi devido aos árabes entenderem, em 711, que Portugal seria o magnífico laranjal da Europa!

Como comentador do programa da Antena 1 E Deus Criou o Mundo, como antevê o futuro da religiosidade e o seu papel na sociedade?

Tenho um sentimento duplo. Por um lado, continuo a acreditar que a espiritualidade e a crença não estão ultrapassadas, mas, honestamente, acho que as pessoas estão cansadas das instituições e da pesada herança que elas, por vezes, comportam.As pessoas querem alguém que lhes fale de temas complexos de forma simples, relatando-lhes a sua experiência pessoal e vivencial, que é o que tentamos fazer no programa, despidos das nossas vestes institucionais.A religiosidade deve ser vivida de forma natural, sem preconceitos nem fórmulas farisaicas ou fechadas; isto não significa dispensar regras!Há cada vez mais falta de referências e é aí que os nossos clérigos (sejam padres ou imãs) desempenham um papel fundamental – na redefinição da linguagem e da forma de orientar a fé dos seus fiéis – especialmente no apelo aos públicos mais jovens.George Bernard Shaw disse uma frase em relação ao Islão, mas que poderia ser dita em relação a qualquer religião: “O islão é a melhor religião. Os muçulmanos os piores seguidores”.Em vésperas do Ramadão, faço preces para que sejamos todos amigos e não inimigos de nós próprios, excluindo-nos de sermos filhos de um mosaico diverso de culturas, que brota de uma mesma humanidade.

Tags Entrevista

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