Em conversa com o Notícias de Viana, o teólogo João Manuel Duque analisa o regresso do interesse religioso, os desafios da teologia contemporânea e os dilemas éticos do transumanismo e da inteligência artificial, defendendo que a humanidade precisa equilibrar liberdade, responsabilidade e sentido de vida.
Notícias de Viana (NdV): Há indicadores que apontam para um regresso ao interesse religioso, ainda que nem sempre institucional ou confessional. Como lê este fenómeno? Estamos perante um retorno genuíno, ou apenas uma busca difusa de sentido?
João Manuel Duque (JMD): Pode ser um pouco das duas coisas. Hoje, muitas pessoas sentem uma necessidade genuína de sentido e procuram respostas de diversas formas. A oferta, especialmente digital, é vasta, e cada um escolhe aquilo que toca nos seus desejos ou inquietações. Esse interesse não precisa ser institucionalizado ou confessional para ser significativo; é, acima de tudo, uma tentativa de encontrar um sentido existencial. “As pessoas procuram sentido, mas precisam de espírito crítico para não serem manipuladas”.
Porém, isso também traz riscos. Nas comunidades tradicionais, havia filtros coletivos, desde orientações, práticas, regras, que davam forma à procura. Hoje isso desapareceu, e as pessoas estão mais vulneráveis a manipulações financeiras, ideológicas ou emocionais. O desenvolvimento do espírito crítico é, por isso, fundamental. É preciso saber analisar, separar informação confiável de manipulação e refletir, antes de se deixar levar.
É positivo que a espiritualidade tenha deixado de ser tabu. Antigamente, ser religioso ou espiritual podia ser considerado antiquado ou socialmente inconveniente. Hoje, há liberdade para procurar, explorar e experimentar, mesmo que de forma difusa. Mas, essa liberdade traz responsabilidade. É preciso discernir, não só em termos de fé, mas também em relação à desinformação, tecnologia e sociedade.
NdV: Defende que a teologia deve falar “para fora a partir de dentro, e para dentro a partir de fora”. Que obstáculos concretos, e dentro de quem, dificultam este movimento bidirecional? Falta escuta, linguagem ou vontade?
JMD: Muitas vezes, o discurso teológico fica fechado em si mesmo, dirigido principalmente à comunidade interna, usando linguagem técnica que poucos entendem fora desse círculo. Os problemas que a comunidade considera prioritários, nem sempre correspondem às questões reais das pessoas, hoje.
É necessário que a teologia se abra para o mundo, sem perder a profundidade da tradição. Isso significa ouvir os problemas da sociedade, refletir sobre eles à luz da fé e propor respostas que, mesmo não sendo definitivas, ofereçam orientação ética e simbólica. A ida e volta entre interior e exterior é essencial. O exterior deve informar a reflexão teológica, e o discurso teológico deve iluminar o mundo com ética, cuidado e sentido.
A missão do teólogo, e do cristão em geral, não é apenas cuidar de um grupo fechado, mas trabalhar por toda a humanidade. O que fazemos dentro da Igreja deve ter repercussão no mundo; o que acontece no mundo, deve desafiar e moldar a teologia.
NdV: Num mundo saturado de informação, como já referiu, e especialização disciplinar, o que pode a teologia oferecer ao debate público, que nem a filosofia, nem a ciência, nem a política conseguem dar?
JMD: A teologia coloca-nos diante da questão central do ser humano: o sentido da vida. A filosofia pode refletir sobre isso, mas muitas vezes evita propor respostas concretas. A teologia cristã explora, a partir de Jesus Cristo, elementos que nos ajudam a compreender Deus, o ser humano e a existência, de forma significativa.
Esses ensinamentos oferecem paradigmas éticos e comunitários que podem informar, mas não substituir, outras áreas do saber. Por exemplo, o conceito cristão de amor ao próximo, sem discriminação, serve de guia moral e ético num mundo contemporâneo marcado por migrações, tensões culturais e desigualdades. Esse é o contributo específico da teologia no debate público: fornecer orientação ética, inspirada por princípios espirituais, mas aplicada às questões humanas concretas.
NdV: Refere uma “teologia de fronteira”, aberta ao diálogo com outras áreas do saber e com o mundo real. Que ganhos traz esse lugar liminar? E que riscos implica abandonar zonas protegidas de identidade e tradição?
JMD: A relação com outros saberes tem a ver com a leitura do mundo. Podemos fazer uma teologia que repete simplesmente o que já foi dito, circulando à volta dos textos, ou podemos reconhecer que a teologia não tem todos os instrumentos para ler o mundo. Outras ciências leem o mundo em perspectivas biológicas, psicológicas, sociológicas, e nós precisamos dessas leituras para compreender a realidade contemporânea.
O ganho de uma teologia de fronteira é uma visão mais global da realidade. O risco é perder zonas protegidas de identidade e tradição, se não houver cuidado em manter a profundidade teológica. A teologia não substitui a ciência, mas recolhe dados complexos e interpreta-os à luz da fé.
NdV: Escreveu que distinguir é necessário, separar é perigoso. Quais são os dualismos mais nocivos, dentro e fora da Igreja, que importa ultrapassar: fé/ razão, sagrado/profano, Igreja/mundo, humano/divino?
JMD: Hoje, essas dicotomias tradicionais perderam muito do seu peso, porque a sociedade já não vê a fé como algo completamente oposto à razão. A fé deixou de ser encarada como obscurantismo e superstição, e isso é positivo. No entanto, continua a ser essencial que a prática religiosa seja acompanhada de espírito crítico. A fé precisa da razão, porque sem reflexão e análise, o risco de manipulação e de credulidade exagerada permanece, e não só na religião, mas em todas as áreas da vida, incluindo o consumo de informação.
Por outro lado, surgem outros dualismos muito mais presentes na sociedade contemporânea e que têm consequências diretas. Por exemplo, a oposição entre elites e povo, que vemos na po
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