Desde o ano passado que os estafetas que trabalham para as aplicações de entregas Uber Eats, Glovo e Bolt, em várias regiões do país, exigem melhores condições de trabalho e rendimentos.
A mais recente paralisação decorreu em fevereiro. O Observador noticiou que “os trabalhadores reivindicam melhorias nas tarifas que recebem pelas entregas que fazem, o «fim de corridas duplicadas por um euro», o «fim de aprovação de contas em massa», um «melhor tratamento nos estabelecimentos» onde vão buscar a comida, e uma maior «facilidade de acesso ao apoio e aos escritórios nas cidades»”.
O Notícias de Viana quis conhecer a realidade dos estafetas na capital do Alto Minho e, neste sentido, juntamente com duas pessoas do Secretariado Diocesano da Mobilidade Humana da Diocese de Viana do Castelo e do Centro Local de Apoio à Integração de Migrantes (CLAIM) da Cáritas Diocesana de Viana do Castelo, deslocou-se até ao parque de estacionamento do shopping, na hora do almoço, para falar com alguns deles, entrevistando-os e apresentando-lhes os serviços prestados pelas duas entidades.
As motas e as bicicletas são os meios de transporte destes estafetas que aguardam pelo pedido e, depois, o levantam na restauração do Estação Viana Shopping. Numa das entradas, estavam dois brasileiros. G. é operário numa fábrica e estafeta em part-time, e C. é só estafeta em part-time. “Vim para Viana do Castelo por indicação de um amigo, e decidimos deixar o Brasil por uma melhor educação dos meus filhos”, confidenciou C., explicando que está em Portugal “há dois anos” com a sua esposa e filhos.
“Saí do Brasil por uma condição melhor de vida e cheguei a Viana do Castelo por acaso, mas ainda bem que estou aqui porque gosto muito”, assegurou G., sublinhando que se sente “muito bem acolhido” pelo povo português. “Só tenho de lhes agradecer. Aliás, comentei muito com os meus amigos que quem vier pela coisa certa, vai dar certo. Agora, quem vier pela coisa errada estará retornando”, confidenciou.
Em 2023, o Dinheiro Vivo divulgou o relatório sobre emprego e formação de 2022 do Centro de Relações Laborais do Ministério do Trabalho, indicando que “há agora mais 88,2 mil estrangeiros nas empresas portugueses”. “Entre 2017 e 2021, último ano para o qual há dados disponíveis, o número de trabalhadores imigrantes em Portugal Continental disparou para 228,1 mil, representando já 7,8% da mão-de-obra nacional”, refere o relatório, acrescentando que “há mais trabalhadores estrangeiros em todos os sectores, sem exceção, tendo esse aumento sido mais expressivo nas atividades administrativas e dos serviços de apoio, que empregou mais 20,2 mil imigrantes; na construção, com mais 13,8 mil estrangeiros; na indústria transformadora, que contratou mais 10,5 mil trabalhadores; na agricultura, produção animal, caça e atividades dos serviços relacionados, silvicultura e exploração florestal, onde se verificou um aumento de oito mil trabalhadores estrangeiros; no comércio por grosso e a retalho, com mais 7,7 mil pessoas; e no alojamento, restauração e similares, que deu trabalho a mais 6,4 mil imigrantes”.
G. é da área de manutenção industrial e conta que “foi muito fácil arranjar emprego” em Viana do Castelo. “Passado poucos dias, consegui um trabalho. Dois meses depois, arranjei mais um”, referiu, especificando que trabalhou “um ano e sete meses” na Enercon (empresa no ramo da energia eólica) e, aos fins de semana, trabalhava na BorgWarner (empresa no ramo automóvel).
Atualmente, já não trabalha em Portugal, mas em Espanha. Vem de 15 em 15 dias para Viana do Castelo.
Já C. trabalhou, inicialmente, em Vila Nova de Gaia, como estofador. Quando decidiram vir para a capital do Alto Minho, deixou o emprego devido à distância e começou a procurar outras ofertas. “Foi fácil encontrar emprego aqui, porque as fábricas estavam a recrutar. Estou na Enercon, mas não estou na minha área (estofamento)”, disse.
Para além de trabalhar na Enercon, C. é estafeta em part-time. “Faço para complementar, porque a família é grande. Tenho três filhos e a minha esposa, neste momento, está de licença de maternidade”, justificou.
Pela sua experiência, passa “muito tempo online sem receber muitos pedidos” e, “na maioria das vezes, são pedidos para locais longe”. “Eu sou listado como veículo não elétrico e sinto que a distribuição, independentemente da distância, não é bem feita. Acaba por ser precário porque tenho aquele pedido e, como é longe, não estou atento a outros que possam aparecer mais perto”, lamentou, considerando que os estafetas precisavam de “mais apoio”. “Nós recebemos de acordo com as distribuições que fizermos. Ao primeiro quilómetro é uma taxa fixa, mais do que isso, o aumento não é muito significativo. Não satisfaz”, acrescentou.
T. é também brasileiro e chegou ao parque de estacionamento um pouco depois, na sua mota. Ao contrário de C., trabalha a tempo inteiro como estafeta. Veio para Portugal para “procurar algo melhor”. “Vejo uma porta para a Europa”, afirmou, contando que está “há dois anos” em Viana do Castelo. “ Os portugueses estão na deles. Os brasileiros estão mais atarefados com o trabalho e, por isso, não têm uma aproximação”, considerou, confidenciando que “foi fácil encontrar emprego”. “No primeiro ano, trabalhei numa fábrica e, agora, sou estafeta em full-time”, especificou, salientando que é uma profissão “reconhecida”, mas acontece mais em regime part-time. “É mais um ganho extra. Quem faz isto, tem um contrato de trabalho”, disse, abordando outras questões como um seguro de trabalho. “Conheço pessoas que trabalham em part-time porque, a tempo inteiro, não compensa. Querem melhores condições de trabalho e, aqui, não é fácil”, exemplificou.
Em Viana do Castelo, segundo um dos estafetas, a maioria dos que se juntam no parque de estacionamento, são estrangeiros. “Somos cerca de 30 estafetas. Há portugueses, mas a grande maioria são brasileiros, paquistaneses e indianos”, especificou T., reforçando que se sente “reconhecido e respeitado” por ser imigrante e estafeta. “As pessoas veem que estamos a trabalhar. Quando entramos no shopping e se apercebem de que vamos levantar um pedido, muitas vezes, dão-nos prioridade. Aliás, no elevador, também nos deixam entrar primeiro”, acrescentou, frisando ainda que, por parte das plataformas, “não tenham reconhecimento”. “Os ganhos só têm baixado do que aumentado. Deveria ser ao contrário, face aos outros custos como a gasolina, a manutenção do veículo e etc.”, argumentou.
Enquanto os brasileiros estavam mais à vontade para falar, os paquistaneses e indianos mostravam-se com mais pressa, e não quiseram ser entrevistados. Ainda assim, tinham interesse em saber quais os serviços disponíveis para os ajudar.
Já prestes a ir embora, abordámos um indiano de bicicleta. Estivemos quase meia hora à conversa. Apercebemo-nos que falava do sistema de castas da Índia, que está entre as formas mais antigas de estratificação social que sobreviveram ao longo dos anos, em que cada pessoa nasce num status social inalterável.
O entrevistado pertence à primeira delas, e por isso faz parte de uma família privilegiada em que os pais trabalhavam, mas não pagavam, por exemplo, água e luz. À primeira vista, um sortudo porque podia ter e fazer tudo o que quisesse. Ainda assim, quis sair do seu país pela sua liberdade. É gay. A sua família aceita-o, mas a comunidade não. E embora, desde 2013, a homossexualidade não seja considerada um crime, o Supremo Tribunal da Índia recusou a legalização do casamento entre pessoas do mesmo sexo, dececionando milhões de casais LGBTQIA+ e ativistas, como noticiou a BBC em 2023.
Em Portugal, o jovem indiano assegura nunca se ter sentido discriminado. No entanto, a Amnistia Internacional constatou que “a discriminação e o preconceito cresceram em Portugal, em 2020”, noticiou a SIC Notícias. “A Amnistia Internacional (AI) constatou também um aumento do “discurso de ódio” na sociedade portuguesa, nomeadamente no plano político, acompanhado do recrudescimento de “um racismo latente”, que acabou com manifestações nas ruas e uma multiplicidade de artigos nos jornais”, lê-se na notícia.
Atualmente, o indiano, que parou no parque de estacionamento tem uma bicicleta, trabalha no Burger King e, como complemento, é estafeta. É “feliz” porque pode ser ele próprio.
Os dados, entre 2021 e 2022, da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) indicam que “o trabalho e a família foram os principais motivos para a migração permanente para Portugal”. Ainda assim, há quem priorize a sua segurança e a sua liberdade. Valores que, muitas vezes, são dados por garantidos. Em pleno séc. XXI ainda há quem tenha de lutar por eles e deixar tudo para trás para, no final, ser só feliz.
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