Advento: experiência de resistência e clandestinidade

«Eis, é de novo Advento no ano da Vossa Igreja, Senhor. De novo rezamos as orações de saudade e ansiosa espera, os cânticos de esperança e de promessa. Mas todas as misérias, todas as aspirações e todas as confiantes certezas se cristalizam nesta palavra: Vinde!». Na verdade, assim começa Karl Rahner a oração ao “Deus que vem”, em Apelos ao Deus do Silêncio. Por isso, talvez o primeiro espanto que o Advento nos traz é o espanto do seu próprio regresso. «Poderemos nós exigir mais da Vossa parte?», contínua, neste sentido, o teólogo alemão. O Advento seria, assim, a redescoberta do próprio tempo, a surpresa de, inesperadamente, nos ser exigida atenção ao Mundo, quando, permanentemente, afirmamos nada nos escapar. E, no entanto, dar o tempo; arriscar-se nas horas das espacialidades cruzadas e provocadas; saber que Deus espera o nosso tempo e, deste modo, reorientar a oração para a prece, em que a tonalidade é a intenção de que Deus seja o «horizonte da nossa linguagem e do nosso desejo», a espessura dos tempos infiguráveis que «descubramos no corpo dos outros». No poema Maran-Atha – palavra elementar destes dias – Ruy Belo desafia mesmo a «reparar que temos um corpo, determinamos uma sombra, e ocupamos um espaço, que nos leva a estar aqui agora nesta rua, e não noutra parte».

Notícias de Viana
18 Dez. 2020 3 mins
Advento: experiência de resistência e clandestinidade

Nesta linha, talvez seja adequado, por um lado, aprender a não cansar o Senhor com os nossos pequenos desejos e as nossas pequenas esperas e, por outro, assumir que «nós somos mais fortes na expectativa do que na posse» e que, por esse motivo, o Advento é uma oportunidade para a resistência e a clandestinidade. Resistência, de quem insiste em olhar «os lírios dos campos e os pássaros que voam» (Mt 6,28) e persiste, como pede Rilke nas Cartas a um Jovem Poeta, em «não calcular, nem contar; mas amadurecer como a árvore que não apressa as suas seivas e que, confiante, se eleva nas tempestades da Primavera sem receio de que a seguir possa não vir o Verão». Clandestinidade, dos que anseiam o êxodo e não se contentam senão com a liberdade. Clandestinidade, dos que vêm barrada a aurora e a madrugada. Clandestinidade, do percurso de Nazaré a Belém. Clandestinidade, dos que têm como tarefa e propósito «embalar a dor dos silêncios vis». Clandestinidade, da atenção e dos gestos diante dos que vivem sem nada procurar, mas prontos a receber. Clandestinidade, dos que passam da necessidade ao desejo.

É curioso, por estas mesmas razões, que o nascimento seja, simultaneamente, dom e imposição, zelo e expulsão, tal qual a vida inteira, composta de tensões e paradoxos, de tal modo que o Advento não prepara senão para a dor e para a violência do parto, ou se quisermos, para o incómodo que é, tantas vezes, reconhecer naquele ou naquilo que nasce o fruto de nós mesmos. A este respeito, na Odisseia, por exemplo, Ulisses, que chega em pleno anonimato a Ítaca, sua terra natal e lugar de onde é legitimamente soberano, só é reconhecido como tal quando, em comprimento dos ritos de hospitalidade, a própria mulher, que o julga mais um pretendente ou viajante, pede a Euricléia, que havia sido ama do herói, que lave os pés ao estrangeiro. É aí, é nesse ato, que ela se apercebe de uma pequena cicatriz, igual à do seu senhor, e não é por acaso que Homero marca, com este momento, a reviravolta da epopeia, dado que é o reconhecimento da identidade do outro, da sua alteridade, na ferida da sua carne, ou se quisermos, na marca da sua vulnerabilidade que, unicamente, nos pode dar acesso ao reverso da história, porque a ferida lança-nos à vida, do mesmo modo que, no fim da gestação, «não podemos não nascer». 

Que, por isso, o Advento e, em consequência, o Natal, não sejam por nós consumidos, mas que a estrela do Senhor nos encontre disponíveis para esta viagem.

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