A fabricação de verdades

Marlene Ferraz
3 Out. 2025 4 mins
Nós, bichos sociais

A nossa realidade é muito alinhavada pelas verdades em que decidimos acreditar e, dizem as cabeças que pensam sobre os tempos, ainda que sempre tenhamos convivido com a mentira, nunca terá sido tão fácil manipular informação e propagar inverdades. Há quem avise: cuidado, estamos (inevitavelmente) a andar sobre chão incerto e convém estarmos atentos às armadilhas de acreditarmos depressa demais.

Sabemos da impossibilidade de termos uma verdade absoluta sobre todas as coisas, mas é urgente nos comprometermos na procura pela melhor versão da verdade, feita na interseção de pontos de vista e com informação verificada. Uma verdade pode demorar a ser criada com precisão e é hoje tão evidente a necessidade de apostarmos num olhar polígrafo (leia-se analisador de mentiras) que nos diga o que podemos considerar como matéria válida – mas, precisamos, antes, estar preparados para receber a melhor verdade, sem nos permitirmos enviesar pela verdade que gostaríamos de ouvir e pela aceitação exageradamente rápida de verdades falsas intencionalmente fabricadas. Há esta tendência nossa para acreditarmos mais em narrativas que nos convenham do que em verdades inconvenientes – e há (ainda) quem suspire por aproveitar-se desta nossa imprudente inclinação. Temos de assumir com coragem um entendimento claro sobre o que acontece dentro e fora de nós, mesmo que essa honestidade sobre a vida nos inunde de medo, incerteza e desilusão. Estamos juntos, debaixo do mesmo céu. E, quando nesta crise da verdade, começamos a suspeitar de tudo e de todos, sim, ficamos com a sensação de estarmos num território instável, duvidoso e solitário. Nós, a lutar contra o inimigo. Nós, a lutar pela verdade única. Quando o verdadeiro inimigo é a não verdade, com bocas a desejar mentir, confundir e convencer. Não podemos desistir da humanidade que nos junta, assim, sem resistirmos minimamente. Sem tentarmos, pelo menos, chegar à melhor versão possível.

O filósofo polaco Bauman fala ainda da modernidade líquida: uma sociedade mais fluída e descomprometida, muito focada no consumo e no descarte, também na satisfação imediata de desejos e metas (a vida instagramável), com relações provisórias e quebráveis, em que tudo pode ser visto como mercadoria consumível e facilmente substituível. Até nós, humanos. Afinal, mais frágeis, mais pressionados, mais sós. E este estado moderno está a dar-se no tal cenário de maior incerteza e suspeita, em que nunca sabemos o que pode acontecer amanhã – guerras, cancelamentos, falsidades, em que nunca sabemos no que podemos confiar. Talvez tenhamos de recomeçar por este ponto: nos dedicarmos ao florescimento humanizado do futuro, com vínculos profundos e estáveis entre nós. Precisamos de referências seguras das mais aclaradas verdades, em que todos contribuímos para um bem comum maior e melhor do que nós, em que os valores importam mais do que as materialidades – criar confiança pela clareza e generosidade. Porque, se nos permitirmos consumir pelo medo, pelo ódio ou pela indiferença, ficaremos mais propensos a acreditar em discursos populistas que nos vendem certezas impraticáveis para um paraíso impossível. Estamos numa jornada que deverá ser comprida, desafiante, difícil até. Mas temos de procurar – incansavelmente – a melhor verdade, até para nos podermos voltar a abraçar, uns e outros, nós, que, lembrar, respiramos debaixo do mesmo céu. Antes de avançarmos muito mais, temos de pensar – poeticamente, filosoficamente, cientificamente, estrategicamente, o que consideremos dizer – sobre o que desejamos para isto que é viver a condição humana. Afinal, o que esperamos nós desta coisa a que chamamos vida?

“Houve uma altura em que só a certeza me dava alguma alegria. Imaginem – a certeza, uma coisa morta.” Louise Gluck

Floresçamos. Juntos.

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