Há algo de perturbadoramente fascinante em Squid Game (série de televisão sul-coreana de drama e thriller sobre 456 jogadores profundamente endividados que participam num misterioso jogo de sobrevivência com consequências fatais). Não, não me refiro apenas às cenas grotescas ou às voltas e reviravoltas da narrativa, mas ao facto de que esta série é um espelho implacável do mundo em que vivemos. Agora, já com a segunda temporada estreada, é impossível não nos perguntarmos: será que estamos mesmo a falar de uma série de ficção ou de um documentário camuflado com uniformes coloridos e máscaras excêntricas?
No fundo, o que acontece nesta nova temporada do Squid Game não é muito diferente do que vivemos diariamente nas redes sociais – e, atrevo-me a dizer, no mundo em geral. Uma das frases do protagonista – «Isso não significa que nos devamos matar uns aos outros; é exatamente isso que eles querem; os criadores deste jogo» – ecoa como um grito desesperado num mar de likes e retweets. É como se a Netflix nos esfregasse na cara o que já sabemos, mas fingimos ignorar: a ganância move o mundo.
Na série, os participantes arriscam a vida para ganhar dinheiro. Nas redes sociais, arriscamos a sanidade mental, a privacidade e, por vezes, até a dignidade, tudo por um punhado de seguidores e coraçõezinhos virtuais. Estamos num jogo em que ninguém nos explicou as regras, mas a premissa é clara: tens de te destacar, custe o que custar.
Quem nunca viu um “influencer” a vender chá detox milagroso ou um primo distante a debater política como se fosse especialista internacional? São os jogos modernos: criar conteúdo viral, acumular cliques e, se possível, sobreviver ao próximo escândalo digital.
E quem são os “criadores do jogo”? Bem, os donos das redes sociais, claro! Os algoritmos ditam o que vemos, o que gostamos e até o que pensamos. Tudo é planeado para nos manter presos no ciclo: mais conteúdo, mais polémica, mais tempo de ecrã. E quanto mais competimos, mais lucram.
No Squid Game, a ganância é óbvia. Os jogadores sabem que estão a lutar por dinheiro. No mundo real, a ganância é mais subtil. Ela esconde-se atrás de hashtags de motivação e de discursos inspiradores sobre “trabalhar no duro”. Não me interpretem mal, trabalhar é essencial (afinal, quem não paga contas?), mas o problema surge quando tudo gira em torno de ter mais, ser mais e mostrar mais.
Quantas vezes já ouvimos dizer que vivemos num mundo de “cada um por si”? Que temos de “ser os melhores”, “chegar ao topo” e “vencer a concorrência”? É esta mentalidade que transforma amigos em rivais e colegas em inimigos. Não é muito diferente do que vemos na série, onde alianças são feitas e desfeitas com a rapidez de um scroll no Instagram.
Mas a ganância não se limita às redes sociais. Ela está em todo o lado: nos negócios, na política, na forma como tratamos o planeta, enfim. Estamos tão ocupados a procurar “vencer” que esquecemos de perguntar: vencer o quê? E a que custo?
O que torna o Squid Game tão desconfortável de assistir é que, no fundo, sabemos que não somos muito diferentes daqueles jogadores. Perante as dificuldades da vida, quantos de nós faríamos escolhas diferentes? Quem nunca desejou “ganhar a todo o custo” que atire a primeira pedra – ou talvez um like, que dói menos.
Mas o protagonista da série lembra-nos de algo essencial: “Isso não significa que nos devamos matar uns aos outros.” Não é irónico que precisemos de um drama completamente assustador para nos ensinar o valor da empatia?
O verdadeiro jogo que devíamos estar a jogar não é sobre ganhar seguidores ou acumular riquezas. É sobre construir pontes, ajudar quem está ao nosso lado e, se possível, deixar o mundo um pouco melhor do que o encontrámos (já dizia Baden-Powell – fundador do movimento escutista). É difícil, eu sei. Especialmente quando o algoritmo nos empurra para a polémica e o mundo nos ensina a competir. Mas talvez seja exatamente por isso que vale a pena tentar.
Se há algo que podemos aprender com Squid Game, é que o humor é uma arma poderosa contra o desespero. Afinal, se não rirmos das absurdas semelhanças entre a série e a nossa realidade, corremos o risco de cair no mesmo ciclo de competição e ganância.
Então, da próxima vez que se sentir tentado a entrar numa discussão acalorada no Facebook ou a comparar a sua vida com as fotos “perfeitas” de alguém no Instagram, lembre-se disto: estamos todos a tentar sobreviver ao mesmo “jogo”. E, quem sabe, se jogarmos juntos em vez de uns contra os outros, talvez tenhamos uma hipótese de vencer – ou pelo menos de viver com um pouco mais de paz.
A segunda temporada de Squid Game pode ser apenas entretenimento, mas também é um convite à reflexão. Será que queremos continuar a jogar o jogo da ganância, da competição e da alienação? Ou será que é possível imaginar um mundo onde a cooperação e a empatia sejam as regras principais?
A escolha é nossa. Afinal, se formos todos peças de um grande jogo, talvez seja hora de reescrever as regras.
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