Pe. Fábio Carvalho: “O medo de sermos livres é um, se não o maior perigo, no meio deste momento histórico”

O Pe. Fábio Carvalho é capelão do Hospital de Santa Luzia (ULSAM), em Viana do Castelo, há quase quatro anos. No período mais crítico da pandemia de covid-19 nunca abandonou o hospital. Nesta entrevista concedia ao Notícias de Viana, explicou-nos como viveu esses momentos e ajuda-nos a ler e a interpretar a circunstância atual.

Micaela Barbosa
10 Set. 2020 9 mins
Pe. Fábio Carvalho: “O medo de sermos livres é um, se não o maior perigo, no meio deste momento histórico”

Como descreve o papel de capelão do Hospital de Santa Luzia (ULSAM)? Como está a vive-lo, no meio da pandemia da Covid-19?

O papel do capelão é de presença efetiva, não abusiva e de alguém que está presente para acrescentar serenidade e racionalidade num tempo de confusão. Celebrei e celebro a eucaristia na capela, estive sempre disponível quer presencialmente, quer com o meu telemóvel sempre ao serviço para atender às solicitações dos doentes e familiares, e para atender doentes em confissão para celebração da sua unção, e inclusive fiz e faço atendimento espiritual no meu gabinete para pessoas da casa como também de fora. Portanto, o meu papel tem sido este ao longo destes quase quatro anos e, designadamente, neste tempo de pandemia, manteve-se. Não foi muito diferente. Nunca deixei de estar no hospital e nunca houve nenhum bloqueio a esse nível. Ouvi alguns testemunhos de colegas de outros hospitais que sentiram algumas dificuldades, mas no nosso hospital isso nunca aconteceu.

No período mais crítico, como descreve o ambiente no hospital, principalmente, no seio daqueles que estiveram na linha da frente de combate?

Naturalmente, de grande apreensão porque, no princípio, perante um vírus novo, estranho, tão desconhecido e, olhando às imagens veiculadas pela comunicação social vindas de outros países, era impossível permanecer despreocupado. No entanto, apesar desta apreensão, vi sempre nos profissionais de saúde deste hospital e com quem fui contactado, durante a pandemia, vontade de não virar as costas ao problema. Esta apreensão era mais visível, sobretudo, nos primeiros tempos, mas foi-se diluindo com o tempo e a nova realidade foi encarada com mais naturalidade e serenidade.

Como é que podemos fazer uma leitura cristã deste momento?

Respondo a essa questão com outra questão, “Poderemos nós não fazer uma leitura cristã deste momento?” Esta pandemia veio impor muitas coisas e algumas muito desagradáveis. Tenho a impressão que trouxe o que há de pior e de melhor na humanidade e, no meio desta confusão, há algo que nós católicos e os cristãos no geral não podemos esquecer sobre pena de entrar na lógica da corrente. Há muita confusão a nossa volta e a nós cristãos impõe-se o sentido da responsabilidade para não entrar na corrente da confusão.

A leitura cristã deste momento histórico só pode ser feita numa ótica de uma racionalidade clara e inequívoca. O mal, sabemo-lo, não prevalecerá. Não há Estado, político, vírus, seja quem for e por que motivos, que vença o bem, a verdade, o bem e a liberdade. Quem pensar o contrário, está no seu direito, mas está objetivamente errado. 

Há outros perigos, para além da infeção com a covid-19, que a pandemia veio trazer ou agudizar?

Acho que há outros perigos, mas todos eles se sintetizam numa palavra, o medo. Hoje, temos medo de cuidar dos doentes, de os visitar, de matar a fome e a sede àqueles que se aproximam de nós, de nos cumprimentar ou de deixarmos que se aproximem de nós, de nos cumprimentarmos, de sermos educados uns com os outros, de sermos autenticamente pessoas e de sermos livres. É o medo de sermos livres, na minha opinião, um se não o maior perigo no meio deste momento histórico. Defendo que devemos combater o vírus e o medo de sermos livres. O medo é um mecanismo de defesa e proteção, mas pode, e sabemos que é, ser utilizado como arma de bloqueio. Precisamos de estar muito atentos à micro e macro escala para que o medo não leve a melhor.

Por outro lado, a que é que a situação atual nos pode convidar e convocar?

A situação atual convoca-nos a coragem moral de estarmos do lado certo da história. Defender com mais convicção aqueles princípios e valores que entendemos incontornáveis e inegociáveis. É estar do lado certo da história. Convoca-nos também à consciencialização de quão vulneráveis somos e quão expostos estamos diante de uma guerra silenciosa, mas real. Sim, uma guerra é o que estamos a viver. A atual situação incita-nos ainda ao quão necessário é darmos respostas seguras diante tudo o que está a acontecer.

Já não sabermos lidar com a nossa vulnerabilidade? Poderá a pandemia ter mostrado como somos analfabetos em humanidade?

Há uma expressão de uma professora amiga, que se dedica à reflexão da bioética, que sintetiza muito desta questão. Ela diz, num dos seus livros, que “vulnerável é a vida humana”. Ponto final. Mas nascemos indefesos, vivemos expostos a tantas agressões, doenças, dificuldades e desastres, e terminamos, muitas vezes, a vida em expressões de vulnerabilidade extrema que já mais poderíamos imaginar. É uma vida ferida, que é parte do que somos e da nossa natureza frágil e mortal. Creio que a páginas tantas o progresso técnico e cientifico, que é ótimo, mas quando se transforma numa divindade pode ser muito obsceno. Quando esse progresso, técnico e evolução não significam um serviço à humanidade, torna-se obsceno, contraproducente e autodestrutivo em muitas circunstâncias. Muitas pessoas chegaram, inclusive, a pensar que, enquanto civilização, esse progresso nos tornaria simplesmente invencíveis e imortais. Mas isso não passa de pura alienação! Se há lição que devemos tirar destes acontecimentos é de que não somos invencíveis e imbatíveis.

Durante o tempo de confinamento foi recorrente dizer-se que a Igreja, ou não agiu, ou agiu aquém das suas possibilidades. Esta afirmação é justa?

Não. A Igreja esteve sempre na linha da frente na ajuda conforme as suas possibilidades e as dificuldades que iam surgindo nos diferentes contextos. A Diocese de Viana do Castelo dispôs, desde o início, das suas estruturas para apoiar este hospital e os sues profissionais de saúde. Exemplo disso, são alguns dos profissionais que pernoitaram o Centro Pastoral Paulo VI, em Darque, de forma gratuita. O Seminário Diocesano, em coordenação com a Liga dos Amigos do Hospital, um hospital de campanha e promovemos uma recolha de fundo, junto dos sacerdotes 50 mil euros para auxiliar na compra de ventiladores e outros tipos de materiais de apoio. Portanto, a Igreja não esteve parada. A Igreja não vive é do e para o marketing. Quando somos menos vistos, não significa que não estejamos a trabalhar, mas quando se vive dessa lógica, entra na lógica da corrente. A Igreja não faz do amor ao próximo uma filantropia ideológica com motivos outros que não sejam o amor porque sim.

Já este mês a eutanásia volta à discussão no parlamento, descendo à especialidade. É, particularmente, perturbador o seguimento do debate nestas circunstâncias?

Para além de perturbador, eu diria que é revelador. Avançar com este assunto no atual contexto é um claro aceno à pouca vontade de fazer ele algo sério e não leviano. Se há coisa que, nesta fase, nos deveria preocupar é lutarmos pela vida das pessoas, pela dignidade da vida e pelo respeito à vida e não incentivarmos legalmente a que as pessoas possam, de alguma forma, pôr termo à sua vida e fazendo dela um objeto manipulável. A eutanásia, despida nestes termos, seja neste tempo ou noutro, será sempre um passo no sentido de um abismo civilizacional cada vez maior. Digo isto porque esta questão não é política. É uma questão de humanidade e nem sequer deveria estar isolada em nenhuma esfera política porque é uma questão transversal, em que podemos todos manifestar independentemente da nossa religião. Preocupa-me ainda que desta questão da eutanásia façam uma bandeira, muitas vezes, populista no sentido de apelar ao sofrimento e à compaixão das pessoas. Acho que, muitos desses argumentos, por muito bem-intencionados que possam ser, carecem da consciência da realidade porque quem trabalha num hospital, vive e convive diariamente com o sofrimento das pessoas sabe que não é matando alguém que cuidamos dessa pessoa ou lhe damos uma resposta humana. A vida nunca pode ser, enquanto princípio, negociada.

Uma questão que tem estado em debate é o conceito de liberdade. Tem-se divulgado a ideia de que liberdade é igual a autodeterminação ou, um simples, “faço o que quero porque a vida é minha”. Em que é que o pensamento cristão pode ajudar no debate?

O argumento da autonomia e da liberdade absoluta é uma falácia porque ela não existe porque precisamos uns dos outros para vier. Aliás, termino com uma imagem que gosto de usar quando se trata de falar da autonomia. Temos uma marca e uma cicatriz que nos prova a vida inteira que não somos, nunca fomos e nunca seremos autónomos, o nosso umbigo. Isso não significa que não sejamos livres, mas significa que a liberdade que possuímos é tanto mais liberdade quanto mais for vivida nesta ótica cristã: uma liberdade comprometida e que vive numa heteronomia de relações de pessoas que se respeitam, amam e cuidam. Este é o grande conceito da liberdade cristã, a liberdade para amar, cuidar e curar, algumas vezes, mas liberdade para cuidar, todas as vezes. Portanto, a liberdade só se realiza, do ponto de vista cristã e verdadeiramente humano, por meio da verdade daquilo que somos e é-nos dada como tarefa pessoal a desenvolver, a trabalhar todos os dias da nossa vida. Esta pandemia provou-nos e continua a provar que trabalhar neste processo de amadurecimento, autoconhecimento e aperfeiçoamento da nossa liberdade é uma tarefa de sempre e para sempre. Nunca estará acabada e, por isso, é que é tão incómoda em determinados contextos sociais e políticos, mas garanto que, enquanto houver cristãos à face da terra, e acho que haverá sempre, esta liberdade é impossível de parar.

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