O Secretariado Diocesano da Pastoral da Saúde promoveu, entre os dias 13 e 17 de abril, a sua IV Assembleia Diocesana subordinada ao tema “Somos Igreja que acolhe e promove a Vida”, transmitindo as conferências por via digital. Numa breve apresentação inicial, o Pe. Fábio Carvalho, Diretor deste Secretariado, afirmou que a temática “não podia ser mais oportuna, quer pela atual situação que o mundo atravessa, quer porque a vida humana, e a sua dignidade, sempre constituirão uma preocupação acrescida”, nomeadamente em circunstâncias em que a vida humana é vulnerável e fragilizada pela doença.
D. Vincenzo Paglia – Cultura da Vida, Ecologia humana e conversão moral em resposta à crise sanitária: desafios bioéticos colocados à Igreja e à inteira comunidade humana
No início da sua reflexão, o Presidente da Pontifícia Academia para a Vida, alertou para o perigo se de desperdiçar a atual pandemia, desvalorizando as questões que o sofrimento por ela causado levantou. “Devemos refletir sobre os ensinamentos que esta tragédia nos oferece, para edificar um futuro mais sereno para todos”, afirmou.
Abordando a temática em três pontos – interdependência, vulnerabilidade e conversão – D. Vincenzo Paglia pontualizou, em relação ao primeiro, o mundo como ecossistema e biosfera, deixando claro que, por esse motivo, “a pandemia não pode ser atribuída, em exclusivo, aos fenómenos naturais, mas é fruto, também, da irresponsabilidade dos seres humanos”, pois “não existem atos individuais sem consequências sociais”. Com efeito, salientou o facto de que o momento presente permite a descoberta de “que a segurança de cada um depende da segurança de todos”, apelando a que, conscientes desta reciprocidade, se sinta cada vez mais que “cada vida é comum”.
Por outro lado, evidenciando que nos sentimos “sempre impreparados” diante da fragilidade humana, manifestou que “o ritmo imparável das nossas atividades, a centralidade atribuída à lógica do mercado, o incremento da força tecnológica e a eficiência dos processos de gestão, não deveriam permitir a perda de controlo de um simples fenómeno biológico” que, sobrecarregando as capacidades dos sistemas hospitalares, mostrou como a ausência de uma globalização da democracia e da solidariedade aprofundou as desigualdades humanas, afirmando que “é necessário repensar a globalização”. “O pós coronavírus, ou se constrói sob o primado da solidariedade, dos laços sociais, da convivência entre todos, ou continuaremos a caminho do abismo”, declarou, convidando a uma resposta para lá da técnica, assente na fraternidade. “Podemos dizer que estamos todos sob a tempestade, mas não estamos todos no mesmo barco”, alertou.
Nesta linha, confessou que, face a uma inédita situação global, é necessária “uma verdadeira conversão de vida, de um novo modelo de desenvolvimento”, que seja capaz de ser alternativa, quer às tentativas de construção de um novo ser humano, através de um novo humanismo assente na proclamação de uma nova liberdade e de novos direitos, quer às tendências de individualismo e nacionalismo patentes. “Devemos sair de uma terra de escravidão para enveredar num novo caminho; (…) o drama da pandemia revela-nos a oportunidade de um tempo no qual verdadeiramente podemos oferecer uma visão de futuro comum para todos, guardando a riqueza do Evangelho”, finalizou.
Prof. Doutor José Carlos Carvalho – A dignidade da vida humana e o cuidado pela pessoa vulnerável a partir da Sagrada Escritura
“O que proponho nesta reflexão, é uma partilha sobre o modo como Jesus, nos Evangelhos, constrói um hospital de campanha”, começou o Prof. José Carlos Carvalho por afirmar, no princípio da sua reflexão, elaborada na sequência de uma estadia pessoal alongada em contexto hospitalar.
Nesta medida, percorrendo, de forma sumária, exemplos de vulnerabilidade na Sagrada Escritura, e apresentando a História do povo de Deus como história da vulnerabilidade da Humanidade ao pecado, mas, também, vulnerabilidade de circunstâncias e de conquistas, afirmou que esta, ao longo da Bíblia, “não é só física ou fisiológica, intrínseca à condição frágil da humanidade”, mas que também “pode ser politica, social, comunitária, familiar, sentimental, eclesial, teológica, jurídica, histórica, internacional, psicológica, ética e, até, moral”, apresentando o próprio Deus como vulnerável, porque não indiferente. “Deus deixa-Se tocar; (…) Deus é vulnerável ao amor”, defendeu.
Com efeito, centrando a sua atenção nos Evangelhos e na ação de Jesus, que vai, segundo indicou, da vulnerabilidade da dúvida na Paixão, “face aos jogos de poder de Pilatos e de Herodes, da populaça e do Sinédrio”, ao sentimento da vulnerabilidade da infidelidade dos discípulos e amigos, o Prof. José Carlos Carvalho indicou que “Jesus aproxima-Se da vulnerabilidade, preocupado com a pessoa e não com a lei”, algo testemunhado na Sua vasta ação taumatúrgica, com fim a desorquestrar o enredamento pessoal em que se viam colocados os que Dele se aproximavam “a desvulnerabilização de Jesus é uma missão restauradora ao nível social, religioso, político, não só ao nível religioso nem só psicológico”, referiu, destacando que Jesus não ficou atado a “uma curiosidade mórbida” em face a tais situações, centrando-se na pessoa como um todo.
Deste modo, evocando a proximidade entre o tempo presente e o tempo histórico de Jesus, nomeadamente através da sede de salvação, que leva as mais das vezes, segundo referiu, ao retrocesso desesperado a horizontes primitivos e arcaicos, indicou que Jesus, perante o sofrimento, “não desbobina uma doutrina, não impõe Sacramentos, não começa por falar, mas deixa que os doentes se digam”, dado que “o terapeuta de Nazaré é um grande auscultador”, mas também “uma casa que acolhe doentes, e não um estaleiro e um repositório de doenças”.
Assim sendo, terminou indicando alguns dos princípios da atuação de Jesus, salientando a congruência/coerência pessoal através da transparência e genuinidade de Si próprio, que não se quer aproveitar do doente, respeitando-o como é, numa aceitação incondicional, lutando radicalmente contra o sofrimento, por via da empatia.
Pe. Miguel Cabral – Posicionamentos do Magistério da Igreja diante das atuais ameaças à dignidade da vida humana: Carta Samaritanus Bonus e testemunho pessoal na doença
Começando por destacar a “linguagem forte e clara” da Carta Samaritanus Bonus, o Pe. Miguel Cabral, partindo da sua experiência de internado em cuidados intensivos em consequência do Sars-Cov 2, pôs em relevo três pedras de toque que recolheu nesta vivência. Em primeiro lugar, a vulnerabilidade, traduzida no poder de um vírus microscópico, capaz de pôr em causa a existência e expondo a humanidade a uma enorme fragilidade pessoal. Por outro lado, a importância dos outros, nomeadamente pelo papel do acompanhamento nestas circunstâncias, convidando a cultivar e investir nas relações de amizade e familiares, e, finalmente, Deus e a pertinência da dimensão vertical da vida humana, numa abertura à transcendência, ao sentido e ao mistério.
Relembrou que a Carta Samaritanus Bonus procura “atualizar a parábola do bom samaritano nos dias de hoje”, perguntado “como podemos tornar concreta” a sua mensagem. De facto, alertando para as circunstâncias em que “nem tudo o que é tecnicamente possível, é eticamente admissível”, expôs que “a dor e a morte não são os critérios últimos sobre a dignidade da pessoa humana”, apontando que “em última analise, o bom samaritano é Cristo”. Assim sendo, convidando a uma ética do cuidado que não seja redutível a cura do doente, mas que abra a um horizonte antropológico mais amplo, afirmou que “um doente incurável, não é um doente in-cuidável”. “É difícil reconhecer o profundo valor da vida humana quando, não obstante todo esforço de assistência, ela continua a se nos apresentar na sua fraqueza e fragilidade. O sofrimento, longe de ser removido do horizonte existencial da pessoa, continua a gerar uma inexaurível pergunta sobre o sentido do viver”, declarou, citando o documento pontifício.
Nesta perspetiva, mencionou a urgência de um olhar contemplativo face aos mais frágeis, capaz de converter o coração perante o mistério da morte e do sofrimento, mas que, de igual modo, quebre as abordagens utilitaristas, a errónea compreensão da compaixão e o individualismo e a solidão crescente, que colocam em causa o respeito pela vida humana, terminando por relembrar a necessidade de uma boa formação ética em contexto hospitalar.
Pe. Fernando Sampaio – A Pastoral dos Doentes, dentro e fora dos hospitais, e o seu contributo para a humanização dos cuidados de saúde. Que futuro?
O Pe. Fernando Sampaio começou por distinguir entre o conceito de pastoral dos doentes, desenvolvido numa perspetiva tradicional, focalizando-se na preparação do doente para a morte, num contexto de recursos muito limitados, e o conceito de pastoral da saúde, em que o foco reside na saúde e nos doentes no seu todo em sentido holístico, mas, também, na atenção aos que deles cuidam, referindo a urgência em promover uma espiritualidade da saúde, purificando a linguagem do sofrimento e a humanização hospitalar, em consequência dos contributos do II Concílio do Vaticano, destacando, nesta medida, a perceção da inadequação de uma pastoral sacramentalista, os incentivos das ordens religiosas votadas à pastoral da saúde, e o próprio magistério.
Nesta linha, afirmou que a Igreja é desafiada a descer às periferias, a criar novos métodos pastorais, a ser bálsamo através de uma presença acolhedora, numa missão que não é exclusiva do capelão. “A pastoral da saúde nasce da ação do coração de Jesus”, apontando, ainda, que “uma comunidade que não cuida dos doentes é uma comunidade abandónica e de descarte, que não pode ser qualificada como humana e cristã”. “A pastoral da saúde é a ação organizada e especializada da Igreja para se aproximar, cuidar, integrar e acompanhar os doentes e seus cuidadores, e para anunciar no mundo da saúde e do sofrimento a boa notícia da vida e da esperança que é Jesus Cristo, no Evangelho”, disse.
Por isso, alertando para a necessidade de um cada vez maior inclinar-se para ouvir e acompanhar o doente, manifestou que o seu território interior “é sagrado, e é necessário despirmos as ideias feitas de que sabemos o que o doente quer ou necessita, o desejo de controlar ou dominar” “O acompanhamento exige preparação, disponibilidade, fidelidade e respeito sacral”, mencionou, apontando, nesta linha, os benefícios da relação pastoral de ajuda.
Neste sentido, manifestou a todos os que acompanham doentes a exigência de “colocar o doente e a sua agenda no centro e tomar a decisão de se calar, tirando o seu protagonismo pessoal do centro e vencendo a tentação de consolar. A sua grande atitude é estabelecer com o doente uma relação empática, colocando-se no lugar dele para perceber o impacto que nele tem o sofrimento e, deste modo, centrar-se naquilo que o doente descreve, narra ou diz no diálogo, sem preocupação no que deve responder, mas com a intencionalidade posta nos significados que o doente dá ou sugere, ao que se deve acrescentar a decisão de não julgar ou condenar o doente pelo que disser, ter por ele e pelo que disse grande respeito e consideração”, pontualizou, reforçando a importância da escuta e da comunicação empática.
D. Manuel Linda – A Ética do Cuidado e o lugar da Pastoral da Saúde numa Igreja Samaritana: exigências do hoje e pistas para o amanhã
“O específico cristão passa pela dimensão samaritana”. Foi deste modo que D. Manuel Linda, Bispo do Porto, principiou a sua reflexão afirmando que o amor, em sentido cristão, não é procura de atos heroicos, mas a resposta concreta às várias situações que a vida nos oferece. “Não é só a cura, mas a salvação integral”, enunciou.
Com efeito, mostrando que a parábola do bom samaritano apresenta uma tripla denúncia face à atitude incompassiva dos seres humanos na presença do sofrimento, nomeadamente por via da manifestação de uma sucessão de desculpas contruídas para não intervir, de medos e alibis que paralisam a ação, repassou as atitudes do bom samaritano no Evangelho de Lucas, destacando a ação pronta e de empobrecimento próprio do cuidador face ao protagonismo dado ao doente. “Mal de nós, que contruímos uma civilização onde o melhor não é para o que mais necessita”, garantiu, certificando que “amar a Deus pode tornar-se uma abstração, mas amar o próximo possui contornos bem definidos”, designadamente através de “um amor gratuito, desinteressado, comprometido, sem alibis, que dá sem receber em trocar, que se esquece de si para dar ao outro, enfim, um amor personificado em Cristo”.
Nesta linha, expôs que, na via-sacra, Cristo se revela um cuidador ferido, considerando que “Jesus não é só o cuidador, mas também aquele que tem necessidade de ser cuidado”, advertindo que, deixar-se ajudar é, igualmente, estar do lado de Jesus.
Deste modo, referindo que a pastoral da saúde é o testemunho de uma Igreja que não se limita ao culto, mas que se apresenta não como fruto de uma escolarização, mas de “uma proximidade de corações”, educando para a saúde, analisando a vida segundo o mistério de Cristo, colocando a pessoa integral ao centro, sensibilizando para a inclusão dos excluídos, capacitando para a fragilidade e ajudando a refletir sobre os dilemas éticos, indicou que esta se defronta hoje com os desafios do excesso de burocratização, da implementação do modelo empresarial ao contexto hospitalar, da promoção de visões prometaicas da vida humana e do incremento de uma medicina dos desejos, ao lado de um deslumbre pela técnica e do enfraquecimento dos direitos dos frágeis, pedindo que se passe da cura ao tomar ao seu cuidado.
Por fim, esclarecendo que “a pandemia é metáfora de todas as doenças”, gerando “a angústia da perda do Mundo”, num espírito de “luto coletivo”, concluiu lembrando que, em qualquer caso, “não há a doença, o que há é a pessoa doente”, apelando a que em todas as Paróquias se construa um núcleo de pastoral da saúde, com fim à humanização.
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