Alexandre Freire Duarte, Doutor em Teologia pela Universidad Pontificia Comillas em Madrid, é docente da Faculdade de Teologia (FT) da Universidade Católica Portuguesa (UCP), onde leciona nas áreas de Metodologias do Trabalho Científico, Espiritualidade e Mística, História e Teologia da Igreja Antiga. Em entrevista ao Notícias de Viana explicou de que modo os fatores religiosos […]
Alexandre Freire Duarte, Doutor em Teologia pela Universidad Pontificia Comillas em Madrid, é docente da Faculdade de Teologia (FT) da Universidade Católica Portuguesa (UCP), onde leciona nas áreas de Metodologias do Trabalho Científico, Espiritualidade e Mística, História e Teologia da Igreja Antiga. Em entrevista ao Notícias de Viana explicou de que modo os fatores religiosos e teológicos ajudam a compreender o conflito entre Rússia e Ucrânia.
1. De que modo o Cristianismo surgiu e se desenvolveu nas zonas atingidas pelos atuais conflitos bélicos?Não se sabe bem como chegou o Cristianismo a estas zonas. Sabemos que no começo do séc. V, João Crisóstomo, Patriarca de Constantinopla enviou um Bispo, de nome Unila, para o Bósforo da Crimeia. Também sabemos que muitos cristãos, sequestrados pelas incursões germanas e de povos da Ásia Central no Império Romano do Oriente, levaram, de modo espontâneo, a fé cristã para essas zonas. De modo mais seguro podemos dizer que, no séc. IX, os Patriarcas de Constantinopla já sentiam a necessidade de enviar Bispos para o território que hoje é a Ucrânia, sendo que, no séc. XI, ocorreu o que podemos chamar de conversão de toda a nação dos “rus” de Kiev (e Novgorod).
2. De que modo a história da Igreja naquele local se cruza com a história dos conflitos políticos e geográficos?Não apenas se cruza, mas está intimamente ligada. As comunidades cristãs ortodoxas foram desenvolvendo um sistema de auto-organização interna que seguia o lema “cada povo, a sua Igreja”. Surgiram, assim, uma série de comunidades autónomas e apenas ligadas entre si pela mesma fé, a mesma Eucaristia e o respeito pelas leis eclesiásticas tradicionais. Tais comunidades encaravam o Patriarca de Constantinopla como a mais relevante figura eclesiástica; mas com a queda de Constantinopla no séc. XV, esse papel começou a ser cada vez mais desempenhado pelo Patriarca de Moscovo. No séc. XVII, um Patriarca de Constantinopla, pressionado e exilado, reconhece ao Patriarca de Moscovo o direito de consagrar o Metropolita de Kiev, conquanto ele se reconhecesse como dependente da autoridade do Patriarcado de Constantinopla (reconhecimento este que nunca ocorreu). Esta situação foi-se mantendo mais ou menos estável, e inclusivamente fortalecida com a inclusão da Ucrânia no Império Russo, até ao fim da União Soviética (URSS), altura em que a Ucrânia obtém a independência e os cristãos ortodoxos nesse país começam a requerer, ao Patriarca de Constantinopla uma comunidade ortodoxa ucraniana, independente do Patriarcado de Moscovo. Em 2018, o atual Patriarca de Constantinopla, Bartolomeu I, concedeu esse desejo e, em consequência, passou a haver na Ucrânia a Comunidade Ortodoxa Ucraniana e a Comunidade Ortodoxa Russa, esta última ainda e sempre vinculada a Moscovo e sem nunca reconhecer aqueloutra. As ligações de grande simbiose político-religiosa entre o governo russo e a comunidade ortodoxa russa, fizeram com que, desde 2019, as ameaças deste atual conflito passassem a ser frequentes, quer entre os dirigentes políticos russos, quer entre os mais importantes dignatários do Patriarcado de Moscovo. Ambos, a seu modo, viam a Ucrânia como um espaço “seu”.
3. O que guarda a cultura e a espiritualidade destes nossos irmãos, que é património humano e de fé, e que não podemos perder?É impossível responder a esta pergunta em poucas palavras, mas se tivesse que sintetizar tudo o que poderia ser dito, ousaria dizer que, com eles, devemos valorizar, mais e mais, a doutrina da divinização. Ou seja: que a meta de todos e cada um dos seres humanos é a de não só se tornar capaz de amar, mas de ser transformado no Amor que Deus é e, assim, passar a viver, já no presente, somente a partir do amor, no amor e orientado ao amor. Foi para isto que Deus Se fez homem: para assumir a nossa natureza humana e dar-nos a partilhar a Sua natureza divina.
4. Como podemos pensar teologicamente este momento?Vivemos numa época em que não gostamos de falar do pecado, mas o que estamos a assistir é uma clara demonstração de até onde o pecado, sempre enraizado no egoísmo, pode ir: até à destruição do nosso irmão e do Deus que, habitando nele na medida em que todos somos Templo de Deus, deve também ser adorado enquanto estando presente e ativo nele. Sim: Cristo veio abrir definitivamente o nosso coração à generosidade infinita que nos permite desprender-nos do egoísmo, mas os destroços deste último ainda permeiam a nossa história, recordando que Cristo está quebrado, ferido, crucificado, até que o amor deixe de ser apenas uma palavra bonita e se torne o ar que respiramos. A guerra na Ucrânia é imensamente diferente das nossas guerrinhas familiares, profissionais, partidárias, etc., mas, tal como estas, é uma evidência da possibilidade da falência do humano (da qual Deus é sempre a primeira e a maior vítima) no meio da persistência tenaz da esperança no humano arraigado na franqueza, que também é fraqueza, do amor. Se Deus é a nossa esperança, nós somos a esperança de Deus, e se, ao contrário d’Este, não amarmos a todos os envolvidos neste conflito, devemos pensar
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