Irmã Maria Aurora: “Nós damos tudo por elas”

Maria Aurora Soares tem 73 anos, dos quais 50 foram dedicados à Congregação das Irmãs Franciscanas Hospitaleiras da Imaculada Conceição. É natural de Terroso, Póvoa de Varzim, mas é no Convento de Santo António, no Arciprestado de Caminha, que está desde 2021 enquanto Irmã Superiora, a cuidar das suas Irmãs até “morrerem em Deus”.

Micaela Barbosa
16 Fev. 2023 12 mins
Irmã Maria Aurora: “Nós damos tudo por elas”

Vem de uma família religiosa e foi criada, desde a 3ª classe, por freiras. No entanto, não tinha intenção de se tornar uma. “Tinha uma tia religiosa, que pertencia à mesma Congregação, que ajudou a minha mãe quando o meu pai foi para o Brasil”, explicou a Irmã Maria Aurora, admitindo: “Nunca pensei em ser religiosa. A minha mãe era uma pessoa muito religiosa e, um dia, em conversa, disse que gostava de ter uma filha religiosa e eu respondi-lhe que fosse ela (risos). Nunca mais me esqueci disto e o que é certo é que isto ficou dentro de mim.”

Teve uma adolescência como muitas outras jovens daquele tempo, mas um outro comentário levou-a a discernir sobre o caminho a seguir. “A Superiora do Colégio, que era muito minha amiga, disse que era uma pena eu não seguir a vida religiosa. Ela não sabia que eu estava a ouvi-la, e isso fez-me relembrar o que a minha mãe tinha dito quando era mais nova”, contou, assegurando que afastava a ideia. No entanto, confidenciou que só se sentia bem a visitar os doentes. “Quando andava com as minhas colegas e chegava a casa, estava insatisfeita comigo mesma. Sentia um vazio, mas quando visitava as pessoas mais doentes, chegava com uma alegria muito grande e foi a partir daí que comecei a pensar na vida religiosa”, contou.

Já na Congregação, a Irmã Maria Aurora formou-se em Biologia e deu aulas em vários colégios em Lamego, Gaia e Ermesinde. “Nós somos itinerantes. Vamos para qualquer sítio e, em qualquer lugar que esteja, sinto-me bem porque sei que é a vontade de Deus para mim”, garantiu, acrescentando que, anos mais tarde, foi para o Governo Provincial, em Leiria.

Seis anos depois, as Superioras disseram-lhe que “precisavam de trocar a Irmã Superiora em Caminha”. Aceitou o convite, mesmo reconhecendo que “nunca tinha trabalhado com pessoas de idade”. “Quando cá cheguei, estranhei, mas como, para mim, Deus fala-me através das Superioras, disse que sim porque estava a fazer a vontade de Deus e, por isso, Ele me daria a Sua Graça para me adaptar, e assim aconteceu”, afirmou.

“Queremos que elas continuem na sua família”

O Convento de Santo António é a sua nova casa, onde acolhe as suas “boas” Irmãs que estão “mais fragilizadas” e que, por isso, precisam dela. “Este Convento começou por ser um centro de formação para religiosas. Mais tarde, funcionou aqui um Colégio e um infantário, mas quando as Irmãs começaram a envelhecer, recolhiam-se aqui”, contou a Irmã Maria Aurora, adiantando que, atualmente, vivem 49 Irmãs (nove delas totalmente dependentes), mais cinco familiares seus que “são uma exceção”. “Há Irmãs que têm irmãs solteiras e, quando morrem os pais, essa irmã fica sozinha e a Irmã é ‘obrigada’ a ir para casa cuidar dela. Então, para a Irmã religiosa não ir para casa, perguntam-nos se as podemos acolher aqui e a Congregação aceita”, exemplificou, salientando que “são exceções”.

Hoje, o Convento conta com o apoio de 20 auxiliares de serviços gerais para ajudar a cuidar das Irmãs. “Isto não é um lar, porque a Segurança Social não tem qualquer responsabilidade aqui. Nós vivemos das reformas das Irmãs”, justificou, salientando que a Congregação quer que as suas Irmãs sejam cuidadas nos seus conventos. “Queremos que elas continuem na sua família”, frisou, acrescentado: “As famílias delas vêm visitá-las, mas não têm qualquer responsabilidade sobre elas. A Congregação assume.”

A Irmã Maria Aurora contou que tem três Irmãs que vão dar catequese nas Paróquias do Arciprestado de Caminha, e que outras ainda fazem crochet e bordados. 

“As famílias, quando vêm visitar as Irmãs, dizem que sentem uma paz”

Com as “poucas vocações” a acontecer na Igreja na Europa devido “ao progresso”, a Congregação, em Portugal, tem menos Irmãs que na Índia, Angola e Moçambique. “Aqui e no Brasil são as comunidades mais envelhecidas, porque foram os primeiros lugares onde a Congregação existiu”, disse, continuando: “A Europa cresceu muito e as famílias não têm a formação cristã que tinham no passado. A minha mãe admitiu que gostava de ter um filho padre ou uma filha freira. Hoje, isso não acontece na maior parte das famílias, mas não quer dizer que haja exceções. O Espírito Santo talvez tenha, para elas, outro tipo de vida consagrada.”

A média de idades em Caminha é de 80 anos, em que a Irmã mais velha tem 99 anos e a mais nova 60. “Nós vivemos toda a vida em fraternidade e, portanto, somos como uma família, em que há amor e, como em todas elas, existem pequenas quezílias, mas vamos tentando resolver”, afirmou, assegurando que ali “reina a fraternidade e a comunhão. “As pessoas dizem que, quando entram aqui, sentem alguma coisa diferente. As famílias, quando vêm visitar as Irmãs, dizem que sentem uma paz e é nessa paz que procuramos realmente viver umas com as outras. Não significa que não existam as nossas coisinhas, mas tentamos superá-las, pedindo desculpa quando necessário”, reiterou.

A Irmã Maria Aurora confidenciou ainda que “não é fácil gerir tudo”, mas assegurou que chega ao final do dia “tranquila”, porque viveu o seu dia para os outros. “Chego à cama e durmo sem comprimidos. Estou descansada e tranquila”, disse, entre risos, frisando: “Aqui vive-se um ambiente tranquilo, onde há momentos para tudo, incluindo festas e momentos de oração em comum e partilhada. É muito bonito.”

“É com muito amor que a gente cuida das nossas Irmãs”

Iniciou a sua vida religiosa com “o início da vida” – as crianças e jovens –, e está agora com “o fim da vida”, – as mais idosas e fragilizadas. Com o tema da eutanásia a ser discutido, a Irmã Maria Aurora não encara bem a possibilidade de ser aprovada. “Ninguém tem o direito de destruir a sua vida. A vida foi dada por Deus e só Ele tem o direito de a tirar”, defendeu, acrescentando: “Estou de acordo em fazer tudo para que a pessoa não sofra, que é o que fazemos aqui. Cuidar e dar dignidade, dando qualidade de vida até morrer.”

Sente-se “muito feliz” com a sua vida e garantiu que as Irmãs também o são. “É com muito amor que nós cuidamos das nossas Irmãs. Elas deram a vida por nós. A Congregação chegou até aqui porque elas trouxeram o carisma para nós e, agora, somos nós que temos de transmiti-lo às gerações seguintes”, disse, contando que “as Irmãs morrem bem e tranquilas”. “Temos exemplos de Irmãs santas”, referiu emocionada, reconhecendo que, muitas delas, ficam “revoltadas” por não se sentirem úteis, mas “acabam por aceitar”. “As Irmãs querem sentir-se úteis até ao fim. Quando já não têm capacidades, dizem-nos que já não podem fazer mais nada, e eu digo-lhes que sim. Podem fazer tudo, oferecendo ao Senhor o que ofereceram até hoje, e que fez sempre tão bem”, disse, contando que, quando as Irmãs deixam de ter capacidades, fala com as Irmãs enfermeiras e vão preparando a mudança da Irmã do seu quarto para a enfermaria. “Custa-lhes porque foram e são pessoas que viveram dependentes dos outros e sempre submissas a Deus, mas tinham a sua independência. Eu sinto que é um sofrimento para elas, mas aprendemos a dar-lhes tempo e ajudá-las”, referiu, enaltecendo o trabalho diário e missão das Irmãs.

Reconhecendo que a sua presença no Convento tem sido “uma escola”, a Irmã Maria Aurora  assumiu que Deus queria que ela se preparasse para quando fosse a vez de ela partir e, por isso, a enviou para Caminha. “O nosso carisma é a hospitalidade. Fazer o bem, onde há bem a fazer. Para mim, o bem a fazer é aqui com estas Irmãs que conheci. Mulheres dinâmicas e apaixonadas por Deus, que agora estão limitadas. E, portanto, a eutanásia não faz sentido. Os cuidados sim, e fico feliz quando sei que há lugares que o praticam”, disse, reiterando que ali prestam cuidados paliativos. “Temos Irmãs com sonda e uma delas, como não aceitava, tiveram que introduzir a sonda no estômago e é alimentada daí”, exemplificou, atirando: “Com o que aconteceu na Turquia, fez-se tudo para salvar vidas. Como é que temos coragem de as tirar? Sei que é para a pessoa não sofrer, mas há muita coisa para minimizar o sofrimento. A vida é intocável.”

A responsável revelou ainda que as Irmãs fazem uma caminhada interior e acabam por aceitar o sofrimento. “Muitas delas não se queixam de nada, mas nós vemos que elas estão a sofrer. E, portanto, o que nos resta fazer é minimizá-lo. Nós fazemos tudo o que é possível. Aliás, vêm aqui equipas do hospital prestar alguns cuidados, e o Centro de Saúde também nos ajuda”, salientou, admitindo que, quando vê as Irmãs “muito mal”, trá-las de novo para o Convento. O seu conforto. A sua família. “A Congregação tem estes conventos para que as Irmãs não se sintam fora do ambiente que viveram toda a vida. Um ambiente de fraternidade, porque nós damos tudo por elas, para que entrem do outro lado pacificadas”, disse, declarando: “São experiências muito lindas.”

“Sabemos o que nos espera do outro lado”

Já o luto, é compreendido pelas Irmãs mas é “mais doloroso” para as famílias. “Não deixa de ser doloroso, mas rezamos pelas que partem. Vamos ao cemitério e, durante o mês, rezamos por aquela Irmã”, contou, explicando que, “normalmente”, as Irmãs ficam sepultadas no local onde estiverem. “Quem morre aqui, fica aqui, mesmo não sendo de cá. No entanto, há Irmãs que pedem para ir para as suas terras-natal e a Congregação faz-lhes essa vontade”, argumentou, assegurando que acompanham as Irmãs “até ao seu último momento”. “Fazemos uma festa. Há a Missa do funeral, que não é uma celebração de lágrimas mas de alegria, porque sabemos que elas estão em Deus. A partir daquele momento, elas estão mais unidas connosco lá”, afirmou, reiterando que o luto é “um processo espiritual”. “Nenhum de nós nasceu para ficar eternamente. Sabemos que estamos de passagem. Quando sentimos a vocação… sim, porque se tem de a sentir… há desprendimentos. Eu tenho de procurar o bem comum que está acima do meu bem pessoal. Nós entendemos isso assim e, por isso, sabemos o que nos espera do outro lado. Já as famílias, descrevem o processo como doloroso, o que é normal. Nós também sentimos saudades das nossas Irmãs. Falamos delas muitas vezes”, referiu, defendendo: “O luto não é tão difícil porque sabemos que ela pode fazer muito mais em Deus. Nós entendemos assim, e é isso que torna todo esse processo mais suave.”

No Convento de Santo António, segundo a Irmã Maria Aurora, “nenhuma Irmã morre sozinha”. “Fazemos tudo para que a Irmã não faleça, mas chega a uma altura em que não podemos fazer mais nada. No entanto, sabemos que ela está bem”, referiu, exemplificando que ainda o outro dia faleceu uma das Irmãs e, antes de adormecer, olhou para elas.  “Nós sentimos que as pessoas morrem em Deus. É muito bonito. É consolador”, frisou, contando que Deus lhe concedeu “uma Graça muito grande”. “Quer o meu pai, quer a minha mãe morreram comigo. Os meus irmãos não tinham possibilidades de ficar com eles, porque tinham os seus trabalhos e as suas famílias e, portanto, pedi à Congregação para ir cuidar deles. Não foi com dinheiro que os ajudei, mas com a minha presença porque, no final, só conta o amor”, afirmou, assegurando: “As pessoas sentem o amor. Eu não preciso de dizer às Irmãs que as amo porque elas sabem, mesmo que, por vezes, tenha que as chamar à atenção, porque quem tem a autoridade tem de zelar pelo bem comum.”

“Amigos da Mãe Clara” amplia vivência do carisma a todos

Hospitalidade e acolhimento integram o carisma da Congregação das Irmãs Franciscanas Hospitaleiras da Imaculada Conceição, que tem como fundadora a Irmã Clara que defendeu “fazer o bem onde há bem a fazer”. E foi neste espírito que se criou o movimento  “Amigos da Mãe Clara” que alarga o carisma da Congregação a todos, desde os mais jovens aos mais velhos. “Antigamente, não tínhamos necessidade de falar do nosso carisma aos leigos, porque havia muitas pessoas que entravam para a vida religiosa, mas com toda esta novidade do Espírito, todas as Congregações entenderam que a família deve ser alargada, ampliando a vivência do nosso carisma às outras pessoas para além das religiosas, intitulando-as de Família Franciscana Secular”, explicou, acrescentado: “Há leigos que não querem estar tão perto e, por isso, existe este ‘movimento’ que procura viver o carisma da hospitalidade no local onde se trabalha, na família e amigos. Não vivem uma vida consagrada, com votos, mas vivem a sua vocação com os seus. Viver na abertura aos outros.”

 As irmãs promovem encontros, em que dão formações para que o seu carisma seja igualmente vivido pelos leigos.

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