Um espetáculo fora da caixa. Um CD. Um livro. Três iniciativas que assinalam o 100º aniversário do Rancho Regional das Lavradeiras de Carreço (Viana do Castelo) que, embora esteja “sólido”, ainda não se sente valorizado e apoiado verdadeiramente. Uma realidade em muitas outras instituições de cultura tradicional e popular.
Carlos Sampaio tem 43 anos e é bisneto, neto e filho, de quem já dirigiu o grupo de folclore que preza todos os elementos. “Eles são os nossos pilares. São eles que nos fazem alavancar e ultrapassar as dificuldades que vão aparecendo e levam o nome de Carreço e Viana do Castelo além-fronteiras”, afirma.
Desde a barriga da sua mãe que acompanha o grupo e, passados 43 anos e nove meses, reconhece as mudanças no panorama do folclore. “Há coisas que devem ser corrigidas urgentemente, porque o folclore representa o canto e a dança. Tudo o que integra a cultura de uma freguesia e região. Quando um grupo sobe ao palco vai mostrar uma série de cultura e tradição de gerações. E isso é uma coisa que primamos em manter”, atira, referindo que é importante inovar. No entanto, “sem descaracterizar o que foi oferecido pelos antepassados”, mais concretamente, por Pedro Homem de Mello, Abel Viana, Carlos Sampaio (seu bisavô) e Miguel Enes Pereira. Todos fundadores do grupo. “Uma das outras coisas que nos revolta, não só a nós, mas a outros grupos, é a falta de apoio à cultura, que deve ser urgentemente vista com outros olhos”, acrescenta, lamentando as permutas interculturais, os orçamentos “impensáveis” e a desvalorização. “As instituições têm de ser compensadas pelo esforço dos seus elementos que, hoje, estudam e trabalham. Muitas vezes, chegam a casa, trajam e pegam no seu carro para se deslocar ao local do espetáculo. No final, regressam a casa para destrajar e voltar para a faculdade ou posto de trabalho”, confidencia, frisando: “Estes gestos são muito valorizados por nós”.
O Rancho Regional das Lavradeiras de Carreço tem, segundo Carlos, “a felicidade” de ser um dos fundadores da Quinta do Santoinho. Ou seja, são residentes durante todo o ano, permitindo-lhes realizar espetáculos que lhes dão “alguma” receita. “Temos também apoio de outras entidades que nos ajudam a fazer a manutenção dos trajes e dos instrumentos, e nos ajudam nas deslocações internas”, conta, recordando que, nos anos 90, percorreram a Europa e participaram em grandes festivais. “Há imagens que são gratificantes e que nos ficam na memória, como comunidades de emigrantes que querem subir ao palco para segurar na nossa bandeira ou rever pessoas conhecidas. Hoje não acontece com tanta frequência porque a cultura tradicional e popular não é vista com olhos de ver. É preciso mudar esse foco para todas as instituições que representam a tradição”, reitera, explicando que o apoio institucional “não é justo”, face ao que os grupos de folclore precisam para todo o ano. “Os apoios são residuais e não dão para rigorosamente nada”, atira, garantindo: “Ajudamos a freguesia e a cidade, atuando em espetáculos, mas tem de haver recompensa. Se temos outras tradições a ser pagas a peso de ouro, esta, que engloba uma série de fatores e história, também precisa de ser valorizada”, frisa.
Passados 100 anos, o grupo continua “vivo e forte” e, para a sua família, é “um marco importante”. “É sinal de que ultrapassámos todos os momentos mais difíceis e, hoje, temos malta que são o pilar. Estão de corpo e alma nisto, bebendo da sabedoria dos mais velhos e transmitindo-a aos mais novos”, afirma, reconhecendo a dificuldade de atrair os mais jovens para o folclore, que antigamente era uma porta para “namoricos” e para sair de casa. Hoje, a oferta é maior. Além disso, o folclore ainda é, aos olhos de muitas pessoas, uma “parolice”. “Aqueles jovens que conseguimos trazer para o grupo, percebem o momento de partilha e de dignificar a nossa terra natal e, quando andam e sobem ao palco, sentem-se bem e felizes”, conta, revelando que o grupo tem trabalhado algumas ideias junto das escolas de Carreço, para “meter o bichinho” nos mais pequenos. E, mostrando que há várias valências no folclore, desde dançar, cantar, tocar instrumentos e segurar a bandeira.
No dia do seu aniversário, o Rancho Regional das Lavradeiras de Carreço promoveu um espetáculo “fora da caixa”, com a “tradição pura e dura”, na Sociedade de Instrução e Recreio. A iniciativa contou com a presença de amigos e artistas musicais como Filipe Gachineiro, Phole, e a dupla Gonçalo Moreira e Pedro Mendes. “Foi um desafio em que reunimos, também, os três grupos de Carreço, promovendo um bom momento de partilha na freguesia”, recorda, especificando que terminaram com cantigas ao desafio. “Correu lindamente”, assegura, revelando que o próximo passo é gravar um CD com os originais do grupo, e lançar um livro com a sua história. “Temos pessoas de relevo no grupo, que nos acompanham há muitos anos e com um vasto leque de conhecimentos. Alguns deles têm dotes musicais e, por isso, a nossa tocata é muito forte”, frisa, realçando “os excelentes executantes”. “Fazemos espetáculos inovadores com amigos do grupo, que nos ajudam a abranger outras áreas que não só o folclore, e fazer outro tipo de espetáculos, gerando receita e permitindo solidez”, disse.
Atualmente, o grupo conta com cerca de 40 elementos dos 5 aos 75 anos. “Não sabemos se os nossos filhos irão continuar o legado, mas tenho a certeza de que têm o bichinho com eles. Aliás, muitas vezes, acompanham-nos e participam nos espetáculos”, conclui.
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