O termo pode soar distante, quase académico, mas rapidamente entrará no vocabulário comum: agentic AI. Em português poderíamos traduzir por “inteligência artificial com agência”. Ao contrário da inteligência artificial tradicional, que apenas responde a perguntas ou gera textos e imagens mediante instruções, a agentic AI é capaz de agir de forma autónoma, tomar decisões, interagir com sistemas complexos e até aprender com as consequências das suas próprias ações. É uma tecnologia que deixa de ser um mero instrumento e passa a comportar-se como um agente, um verdadeiro “ator digital” dentro da vida real.
Na saúde, esta mudança não é apenas tecnológica; é civilizacional. Se até agora víamos a inteligência artificial como um auxiliar na leitura de exames, na análise de dados ou na triagem de sintomas, com a agentic AI entramos num território novo: sistemas que organizam altas hospitalares, coordenam consultas, acompanham a adesão a tratamentos e até intervêm em processos de decisão clínica. Estamos a falar de algoritmos que já não esperam instruções; atuam.
A promessa é clara: maior eficiência, menos burocracia, melhor acompanhamento do doente e uma resposta mais rápida a problemas que antes se perdiam no labirinto administrativo. Num país onde a escassez de profissionais de saúde é cada vez mais evidente, a ideia de um “colega digital” que organiza processos e liberta médicos e enfermeiros para cuidar parece irresistível. Mas é precisamente no momento em que a tecnologia se mostra mais sedutora que devemos fazer as perguntas mais difíceis.
Quem responde por uma decisão errada tomada por um agente autónomo? Quem garante que os algoritmos não reproduzem preconceitos escondidos nos dados com que foram treinados? Quem assegura que a autonomia digital não se sobrepõe ao julgamento clínico humano, transformando profissionais em meros verificadores de decisões pré-programadas?
O risco não é apenas técnico. É ético. É político. É humano. A saúde não pode ser tratada como um simples setor de eficiência; é o espaço onde vidas se decidem e onde a dignidade deve ser inegociável. Um algoritmo pode sugerir um tratamento, mas não pode compreender a angústia de um doente que olha nos olhos do médico à procura de esperança. Um agente digital pode monitorizar a toma da medicação, mas não pode substituir o gesto de empatia que faz com que alguém se sinta cuidado e não apenas observado.
É por isso que a agentic AI nos obriga a ir além do fascínio. O debate essencial não é “o que pode fazer?”, mas sim “o que deve fazer?”. A ética da saúde sempre assentou em princípios claros: beneficência, não maleficência, justiça e autonomia do doente. Qual destes princípios será posto em causa se a máquina começar a decidir? E que garantias temos de que a pressa em reduzir custos não acabará por transformar os doentes em meros números numa base de dados?
Outro desafio incontornável é o da equidade. A história mostra-nos que cada inovação pode ser uma ponte ou um muro. Se a agentic AI ficar apenas ao alcance dos hospitais mais ricos, ampliará as desigualdades no acesso à saúde. Mas se for regulada e democratizada, poderá representar uma das maiores oportunidades para levar cuidados de qualidade a regiões remotas, populações esquecidas e sistemas de saúde sobrecarregados. A tecnologia é neutra; o uso que lhe damos é que define se serve a justiça social ou a perpetuação da exclusão.
O entusiasmo com a agentic AI não deve ser confundido com ingenuidade. Precisamos de regulação forte, de auditorias independentes, de mecanismos claros de responsabilização e de supervisão clínica permanente. Não basta confiar nos fabricantes de tecnologia ou nas promessas de eficiência dos gestores. A sociedade tem o dever de exigir transparência, explicabilidade e, acima de tudo, que cada passo dado por estas máquinas respeite a dignidade humana.
Acredito que a agentic AI pode transformar a saúde para melhor. Pode libertar tempo aos profissionais, reduzir erros administrativos, dar mais voz ao doente e até antecipar problemas de saúde antes que se agravem. Mas só será uma revolução benéfica se não cairmos na tentação de delegar na máquina aquilo que é inalienavelmente humano: a decisão ética, o cuidado compassivo, a responsabilidade última perante a vida.
O futuro não será escrito apenas por engenheiros ou programadores. Será escrito por todos nós, enquanto sociedade. O desafio é não deixarmos que a tecnologia dite sozinha o rumo da saúde. Precisamos de escolher, deliberar e colocar limites. A agentic AI pode ser uma aliada poderosa, mas apenas se a mantivermos ao serviço da humanidade. Caso contrário, corremos o risco de transformar o ato de cuidar num processo automatizado, eficaz, mas desprovido daquilo que torna a medicina uma arte: a relação entre pessoas.
É aqui que se joga a verdadeira batalha do nosso tempo. Não é a batalha da inovação contra a tradição, mas da ética contra a indiferença. E, nesta batalha, não podemos falhar.
Notícias atuais e relevantes que definem a atualidade e a nossa sociedade.
Espaço de opinião para reflexões e debates que exploram análises e pontos de vista variados.