Ao longo da história, muitas cidades foram esquecidas enquanto outras reinventaram a sua identidade. Entre os topónimos que evocam os primórdios da civilização na Península Ibérica, destaca-se o nome Calpe
— atribuído pelos antigos gregos a promontórios junto ao mar, pontos de referência para navegadores e símbolo de mundos fronteiriços. Se Gibraltar é o Calpe do sul, o “Mons Calpe” das Colunas de Hércules, e Ifach (Calp) na Comunidade Valenciana o Calpe do Levante, há um terceiro Calpe esquecido: Viana (do Castelo).
Um excerto de um poema latino atribuído a autores tardo-romanos refere:
“Protendit latius arva Occeani Vianna solo, quae glauca recumbit Occeano Hisperiae, Tude hic atque Argua Calpe,
Hic Hispanus arger, tellos hic dives Iberum.”
“Vianna estende amplamente os campos do Oceano sobre o solo, repousando verdejante junto ao mar da Hispânia.
Aqui estão Tude e a Calpe Argua,
aqui brilha a terra hispânica, rica na seiva dos Ibéricos.”
A presença de “Vianna” ao lado de “Calpe” neste contexto poético não é acidental. Estudos identificam Viana como um local que terá sido designado de Calpe pelos gregos e romanos, antes de receber o nome celta de “Vianna”, associado a montes claros ou picos brancos — talvez uma alusão ao monte de Santa Luzia, na época desprovida da vegetação que hoje a cobre, e daí a referência no texto latino a Calpe Argua (na raiz “arg-” (do indo-europeu arg- ou argu-) a ideia de: brilho, brancura, luz (como em argentum = prata), e clareza, esplendor (como em arguere = tornar claro, mostrar, acusar).
A relação com Calpe é simbólica, provavelmente não geográfica, pois aproxima Viana do Castelo de Gibraltar como ponto limítrofe do mundo civilizado antigo, talvez até como substituto mitológico. Isto porque na Etimologia latina, “Viana” pode derivar de “Vianam”, com a ideia de “lugar de passagem” ou “caminho antigo” — relacionado com a rede viária romana que atravessava o Noroeste Peninsular (a via XIX do Itinerário de Antonino passa muito perto da atual Viana).
Autores como Frei Leão de São Tomás e estudiosos contemporâneos apontam que Calpe seria o nome original dado ao monte sobranceiro e povoado costeiro onde hoje se ergue Viana, através da tradição
mitológica que atribui inclusive a fundação deste “Calpe atlântico” a Diómedes, herói grego da guerra de Tróia, que ali teria desembarcado e fundado uma colónia com esse nome.
(Imagem composta por IA, tendo por base dados como elementos geomorfológicos, edafo-climáticos e fotos de Viana dos finais do século XIX, de como seria a visão da atual Viana, vista por mar à época da chegada dos Gregos ©Autor)
A importância do topónimo Calpe — comum às três localidades de Gibraltar, Calp e Viana — reside na sua função geográfica e simbólica. Todos estes lugares possuem um promontório rochoso que, durante séculos, guiou navegadores pelo Atlântico e Mediterrâneo – três pontos cardeais de uma herança marítima e
cultural partilhada, que seria igualmente importante promover a sua geminação, num contexto de conexão histórica e cultural ibérica, mais alargado.
Perante estas descobertas, propõe-se um reencontro histórico entre as três “Calpes” ibéricas — um possível “hermanamento” entre Gibraltar, Calp (Ifach) e Viana do Castelo. A ciência histórica, livre de
ideologias, deve abrir espaço à reconciliação com a verdade e à valorização da nossa memória partilhada.
Viana foi Calpe. E talvez seja tempo de o reconhecer novamente.
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