II
A última Ceia (Mt 26, 17-29)
1. Lectio: que diz o texto bíblico em si?
A segunda secção do relato da Paixão de Jesus segundo São Mateus é a última ceia (Mt 26, 27-29). Baseando-nos no critério cronológico, podemos subdividir este texto em três partes: os preparativos da páscoa (Mt 26, 17-19), o anúncio da traição de Judas (Mt 26, 20-25) e a última ceia de Jesus (Mt 26, 26-29).
Mt 26, 17-19: os preparativos da Páscoa
A primeira parte do texto abre-se com uma indicação cronológica e simultaneamente teológica (“No primeiro dia da festa dos ázimos”) e com uma pergunta exemplar para os discípulos de todos os tempos (“onde queres que façamos os preparativos para comer a páscoa?”).
O primeiro dia da festa dos ázimos, ou seja, o primeiro dos sete dias em que se comia pão sem fermento, corresponde ao dia 15 do mês de Nisân. É num contexto de recordação da libertação da escravidão do Egipto e de esperança da libertação messiânica que a última ceia se insere e pode ser compreendida.
Na resposta à pergunta dos discípulos, Jesus aparece como aquele que conhece os tempos e os planos de Deus. Por isso mesmo dá ordens concretas aos seus discípulos no que toca à preparação da Páscoa. Os discípulos aparecem como modelos de obediências às palavras de Jesus.
O anúncio da traição de Judas (Mt 26, 20-25)
Enquanto os discípulos preparavam a ceia pascal de Jesus, Judas preparava-se para trair Jesus. No entanto, esta traição não fica encoberta. Jesus no decorrer da ceia põe-na a nu. Se num primeiro momento revela-a de uma forma mais geral e abrangente (“Um de vós me há de entregar”), no final com clareza e precisão indica o traidor (“Tu o disseste”). Ante esta advertência, que provocou tristeza nos discípulos, cada um deles interroga-se: “Porventura serei eu, Senhor?” Também Judas se interrogou: “Porventura serei eu, Mestre?” Esta pergunta, à primeira vista, é semelhante à dos restantes discípulos. Contudo, possui uma nuance significativa. Enquanto os discípulos chamam a Cristo por Senhor, Judas chama-o de Mestre, Rabbí. “Neste momento, Jesus já não é mais o centro da sua vida.” (G. Zevini – P. Giordano Cabra) Quando se vê desmascarado, Judas não assume o que fez nem se arrepende, mas tenta ocultar a sua ação com hipocrisia.
A última ceia de Jesus (Mt 26, 26-29)
Apesar da traição de Judas, Jesus continua a amar todos os seus discípulos e a revelar-lhes o seu amor ao instituir a eucaristia no contexto da refeição pascal, como nos narra a terceira e última parte do nosso texto. À traição de Judas, Cristo responde com a nova aliança.
Estes versículos que podem ser considerados uma etiologia cultual, ou seja, a origem e a causa de um rito, desempenha um papel fundamental no relato da Paixão. Com efeito, as palavras pronunciadas por Jesus sobre o pão e sobre o cálice são a chave de leitura, o critério hermenêutico da Paixão. “Na narração da Paixão, com efeito, conhecemos o que Jesus sofreu, mas não porque sofreu. Isto é-nos dito na narração da ceia: ele vai ao encontro da paixão por nós”. (Bruno Maggioni) Corpo entregue e Sangue derramado são expressão da totalidade de uma existência que se dá, entrega como dom aos outros e pelos outros. A existência de Jesus é uma pró-existência, uma existência a favor dos outros.
Nesta ceia de despedida, o protagonista é Jesus. É só ele que fala e atua. Os gestos que Jesus realiza são os mesmos que realizou na multiplicação dos pães, ou vice-versa: tomou, deu graças, partiu e entregou. Os verbos, as ações de uma vida verdadeiramente eucarística e que foram repetidos ininterruptamente até aos nossos dias, configurando a estrutura não só da liturgia eucarística, mas também de uma verdadeira espiritualidade eucarística. “O vinho deve ser bebido e o pão deve ser comido. Isto é a vida do Mestre deve ser compartilhada pelos discípulos. Não basta celebrá-la, nem tão pouco recordá-la deve ser revivida. Esta é a verdadeira memória.” (Bruno Maggioni)
As palavras que acompanham os gestos do pão partido e do cálice compartilhado indicam o sentido que Cristo atribui à sua Paixão. As palavras sobre o cálice apresentam o valor expiatório da morte de Jesus. A sua paixão, morte e ressurreição serão um sacrifício para o perdão dos pecados. A missão de Jesus expressa no seu nome (Deus Salva) realiza-se plenamente na hora da cruz. O “por muitos” que aparece no texto tem de ser entendido em sentido total e não parcial. Cristo morre por todos e não só por alguns.
A última afirmação de Jesus neste texto assegura-nos que Cristo estava consciente da fecundidade da sua entrega. Jesus há de voltar a beber o vinho novo no reino do Pai.
Meditatio: que me diz o Senhor com este texto bíblico?
- a) “Onde queres que façamos os preparativos para comer a Páscoa?”
i) A Quaresma não é uma finalidade em si mesma, mas um caminho de preparação para a Páscoa. Estou a aproveitar o itinerário quaresmal para preparar a Páscoa? Fiz algum propósito/compromisso quaresmal? Como gostaria de chegar à Páscoa? Preocupo-me mais com os preparativos exteriores (limpezas, arrumações, viagens, …) ou interiores (jejum, oração e esmola)?
- b) “Porventura serei eu, Senhor?”
i) A possibilidade da traição espreita cada discípulo. É necessária uma grande vigilância para não enveredar pelo caminho da traição. Tenho consciência que o traidor posso ser eu? As minhas intenções são sempre puras e retas? Não será o momento de, com seriedade e grande confiança na misericórdia de Deus, fazer o meu exame de consciência de cristão e celebrar o sacramento da reconciliação?
- c) “Jesus tomou o pão e, depois de pronunciar a bênção, partiu-o e deu-o aos seus discípulos.”
i) Tomar, dar graças, partir e dar são os verbos da eucaristia. Uma vida verdadeiramente eucarística tem de conjugar estes verbos nas suas ações concretas. Sei tomar a minha vida nas minhas mãos como dom de Deus ou limito-me a responder a estímulos? Sou grato pelos dons que Deus me concede ou lamento-me por não ter os dons dos outros? Sei partir, ou seja, quebrar-me e deslocar-me pelos e até aos outros? Sei dar-me, entregar o meu tempo e as minhas qualidades, por uma causa em benefício dos demais?
2. Oratio: que digo ao Senhor, em resposta à sua Palavra?
Senhor Jesus,
OBRIGADO por te fazeres presente e te tornares o nosso alimento no sacramento da Eucaristia, memorial do teu grande amor e da tua entrega por todos e cada um de nós.
DESCULPA todas as nossas pequenas e grandes traições, todas aquelas vezes que não agimos com intenção pura e reta procurando os nossos interesses e não a tua maior glória, a salvação dos irmãos e a nossa própria santificação.
AJUDA-ME a preparar a tua Páscoa. Quero tomar, dar graças, partir e dar a minha vida. Que a celebração desta Páscoa não seja mais uma festa de calendário, mas a oportunidade de renascer contigo.
3. Actio: que decisão concreta me convida a tomar a Palavra que escutei, meditei e rezei?
Consciente de que devo preparar a Páscoa de Jesus e que a traição bate à minha porta, vou fazer o meu exame de consciência e celebrar o sacramento da reconciliação. Além disto, tentarei participar na celebração eucarística, prestando atenção aos gestos de Jesus que se repetem em cada liturgia eucarística: tomar, dar graças, partir e dar.