Pensemos, a este respeito, no conto “A Bela e o Monstro”, ou seja, a conhecida história de Bela, a mais nova de entre três filhas de um mercador viúvo e falido que, para salvar o pai, se dispõe a passar o resto dos seus dias num castelo não muito acolhedor, sob a tutela de um monstro. Todavia, à medida que os eventos se vão sucedendo, o clima de repúdio recíproco vai-se transformando, lentamente, numa relação de amizade e, posteriormente, numa relação de amor que desconstrói, até mesmo fisicamente, o próprio monstro, que retorna àquilo que havia sido no passado, um belo príncipe.
Muito possivelmente, a partir daqui, tiraríamos duas ou três lições de moral para a nossa vida e não muito mais. Mas, antes de entrarmos, de novo, na história, seria bom recordar a iconografia tradicional da Imaculada Conceição, em especial, um pequeno pormenor: os pés de uma mulher que esmaga, sufocando por inteiro, uma serpente. De facto, a tradição cristã parece identificar, no interior do mistério da Imaculada Conceição, esta disputa entre a Mulher e o Dragão, com claras ressonâncias bíblicas, arquétipos do conflito entre a beleza e a fealdade, também presente até no próprio título da história de “A Bela e o Monstro”. Ora, é este pequeno acaso que usamos como ponto de partida para aclarar o significado do Dogma da Imaculada Conceição.
A verdade é que, entrar no íntimo do Dogma da Imaculada Conceição, é antever que a Imaculada vence a força da serpente, não por ter uma força superior, mas pelo poder da sua beleza e pelo fascínio da sua santidade, como símbolo de um poder que nem é corrupto, nem corrompedor, tal qual Bela face ao Monstro. Nesta linha, e de modo surpreendente, o mistério que é proposto no dia 8 de dezembro reserva um concentrado político e social implícito: o poder que salva é o anti-poder, representado pela situação da mulher-frágil; aquela que destruiu a sedução do autoritarismo e do totalitarismo, a partir de dentro; aquela que aceita a salvação discreta e, simultaneamente, arriscada, que significa a maternidade, isto é, dar corpo ao Dom, que a vida é. Assim, talvez possamos começar a compreender o que Karl Rahner, um dos mais relevantes teólogos do séc. XX, quis dizer quando deixou claro que “Maria só se pode compreender desde Cristo”. E isto, se recordamos as palavras de Isaías quando fala Naquele que “não gritará, não levantará a voz, não clamará nas ruas. Não quebrará a cana rachada, nem apagará a chama que ainda fumega” (Is 42, 2-3).
Neste sentido, o Dogma da Imaculada Conceição ensina-nos o modo a partir do qual somos salvos, porque, de facto, Deus não se preocupa com operações cosméticas ou simples reparações momentâneas. Olhando Maria na sua Conceição Imaculada, é fácil intuir que Deus vai até à raiz, e que este mesmo Deus salva, aceitando o que nós somos, o que nós podemos dar e ser a cada momento. Mas este mistério também nos ajuda a perceber que, ao contrário de uma cultura que tem como base o pecado e a retribuição, em que desde o momento em que nascemos parece que temos sempre algo a pagar, alguma dívida a saldar ou alguém a quem recompensar, é o Dom e a Graça que estão no centro da História, que o Paraíso é mais primordial que o “vale de lágrimas” e que tudo o que existe, existe em processo, o que leva a considerar que, por muito que nos custe, não existam pessoas, grupos ou estruturas irremediáveis ou irrecuperáveis. De facto, é também isto que acontece em “A Bela e o Monstro”, visto que Bela vai até ao âmago e ao núcleo da questão, obrigando o Monstro a uma clara reorganização, fazendo-o, inclusivamente, perceber que ainda existe uma oportunidade, e que o seu estado original não é aquele. Efetivamente, assim como no “sim” de Maria à maternidade, também com a ação de Bela a história abre-se e reabre-se. Na verdade, esta estranha sintonia deixa pressentir que a Imaculada Conceição ganha relevância como momento da recuperação da possibilidade, como instante da recuperação do futuro, como lugar onde nos sentimos convocados a ser parteiros da vida que os outros ainda não conseguiram dar à luz, ou que a própria vida deixou perdida.
Todavia, um saudável entendimento do lugar de Maria no todo da História da Salvação leva-nos a perceber que “a Imaculada Conceição não depende dos seus méritos pessoais, mas é completamente obra de Deus”. Na verdade, em “A Bela e o Monstro” não é claro se todas estas transformações ocorrem ou não pelos particulares dotes e qualidade da mais nova filha do mercador, mas, no que toca a Maria, é claro que não é assim, acima de tudo para preservar a afirmação fundamental de que “Deus vem de Deus” e que, por isso, o filho que nasce, como todos os filhos, é diferente dos pais e, acima de tudo, alguém cuja identidade temos de descobrir deliciadamente, porque não nos pertence.